domingo, 27 de setembro de 2009

"Vamos Fugir..." crônica de Pedro Salgueiro para O POVO

"O Grito" de Munch/ Rubem Fonseca/ Cartaz de "Laranja Mecânica" de Kubrick

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Vamos Fugir...

"Vamos fugir pra outro lugar, baby,
onde haja um tobogã onde
a gente escorregue"
(Gilberto Gil)

Faz algum tempo que eu e alguns amigos, diversos familiares, dois ou três conhecidos, temos conversado muito e frequentemente sobre a impossibilidade crescente de se viver numa grande cidade. Pensamos em ir embora pra bem longe, mas bem longe é apenas uma forma do medo ir tentando anular os terríveis perigos que nos rondam. Não vivemos mais tranquilos em canto nenhum, na rua, no bar, na esquina, botando o lixo na calçada, no trânsito nem se fala, na cama... Do interior do Estado nos chegam notícias aterrorizantes, de roubos, saques, drogas e medos, medos, medos... Onde então nossa Passargada?

Vivemos numa ditadura do medo, andamos sobressaltados, mesmo de manhãzinha na caminhada, no café da padaria, no cochilo da novela. O perigo nos ronda por todos os lados: basta que liguemos a TV, o rádio, os sentidos.

Talvez esse medo só vá ser sentido mais claramente nas próximas décadas, nos fetos prematuros, nos filhos violentos, nos avós insones, nas mães aflitas. Nas mãos, sim, nas mãos. A doença do medo ultrapassará o câncer, o infarto, as doenças fora de moda e as da moda. O medo dominará o mundo, o ser humano construirá pra si não mais casas e apartamentos, mas prisões domiciliares... e a polícia não servirá pra proteger os de fora, os outros, porém os de casa, os guardados.

Os bairros serão separados, grandes portões nos finais das ruas, câmeras em todas as árvores. Viveremos que nem as gangues, os daquela rua em diante serão nossos inimigos mortais. Nossa querida e sonsa loirinha descamisada pelo sol se tornará uma imensa fronteira da Aerolândia com o Lagamar. Estádios de futebol serão fechados, assistiremos às pelejas pelos canais fechados e os jogadores terão lugares determinados pra comemorarem os gols, em pontos estratégicos bem longe da fúria das torcidas organizadas.

Construirão grandes condomínios fechados, auto-suficientes, com escolas, supermercados, transportes individuais. Aos poucos cada unidade condominial se tornará naturalmente mais complexa, terão que ter não mais síndicos, mas prefeitos, vereadores, juízes internos; não demorará muito e serão necessárias prisões.

Pois, inevitavelmente, sem que nenhum de seus muros tenha sido violado pelos de fora, o medo terá invadido as fortalezas, as de Nossa Senhora de Assunção ou não.

``Porque ele nunca teria ficado apenas do lado de fora``, diz a senhora religiosa. Ah, sim, as religiões, claro, crescerão e se multiplicarão. Medo, pelo medo... — Como solução, proponho que se subdividam todos os condomínios fechados em unidades residenciais, grunhiu o prefeito, que fora um dia síndico e que acha que tem conhecimentos acumulados pra cuidar de sua própria casa. Mas tem dúvidas...

Não demorará muito e nossa obra de arte mais apreciada e valorizada será O Grito, nosso escritor predileto será Rubem Fonseca, nosso filme adorado será Laranja Mecânica.

Mas também sei que quando finalmente chegar essa época nosso pavor terá se transformado em fascínio, pois inevitavelmente o medo nos terá vencido.

PEDRO SALGUEIRO é escritor. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.

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