domingo, 25 de outubro de 2009

"Ideal: Sombra, História e Água Fresca", crônica de Ana Miranda para O POVO


Crônica O POVO 16 de outubro de 2009
O Ideal é clube de minha infância, quando passo ali na frente, vejo o muro de pedras, os arcos se debruçando sobre varandas, ainda coqueiros, ainda o branco, ainda a torre, ainda as telhas, sinto o coração se apertar e aquele sabor proustiano de ter mordido um bolinho de madalena. A água azul, o professor russo de balé, a festa de aniversário... O mundo tão amplo, a vida tão encantadora, os dias tão intensos... Minha mãe era moça do interior, e se casara com o doutor engenheiro, em Lima Campos, como num sonho de cinderela.

Depois de mandá-la estudar na Escola Doméstica de Natal, onde ela aprendera alguns refinamentos, meu pai a trouxera para a capital, introduzindo-a num mundo que ela conhecia apenas de comentários. Foi um desafio para ela frequentar os bailes e as demais atividades do clube, ali era a prova de sua aceitação, e de ser aceita por uma sociedade constituída, com seus costumes e sua atmosfera. Ela gostou, era, e é, uma mulher alegre, bem disposta e aberta ao novo. Gostava de dançar, gostava de esportes, de jogos, de conversas, de participar da vida da cidade, de vestidos bonitos...

O Ideal me faz recordar a presença das costureiras e bordadeiras, das rendeiras, que vinham em nossa casa preparar a toalete do casal. Minha mãe conta que havia uma lavadeira só para lavar e engomar as camisas de papai, imaculadas. Mulheres que ganhavam a vida executando suas pequenas obras de arte em tecidos preciosos, recobrindo-os da beleza de suas mãos dedicadas...
O Ideal para mim estava ligado à despedida de meus pais, impecáveis, rumo a uma vida glamurosa e intensa, levados pelo sócio de meu pai numa empresa construtora, meu padrinho querido Edgar Sá, membro antigo daquela confraria cearense.
Na minha volta ao Ceará, lá está ele, o Ideal: distinto, preservado, lindo, abrigando tantas lembranças, de uma Fortaleza alva, espaçosa, bulevares, praças, palacetes, edifícios públicos, no gosto eclético. Intrigou-me a origem daquela arquitetura, que faz lembrar os casarões californianos de inspiração mexicana. Até que chegou a minhas mãos uma revista que conta algo da história do clube, suas origens, sua construção e cotidiano. Um dos fundadores do clube, numa viagem internacional, teria trazido a planta de um hotel da Califórnia em estilo característico da região, o Colonial Mexicano, para servir de modelo, mas o clube foi projetado por um arquiteto importante na história da arquitetura cearense: Sylvio Jaguaribe Eckman, descendente de um dos Alencar que sucumbiram na guerra de 1817.

Também a publicação esclareceu-me a origem do nome e do clube, em versões pitorescas, narradas no discurso de um dos fundadores. No começo dos anos 1930, um grupo de doze amigos, entre comerciantes, banqueiros, industriais, um arquiteto, um exportador, um pecuarista, um médico, costumava tomar banho num tanque, que ficava em terras de um deles, entre goles de bebidas espirituosas e boas conversas. Comentavam que aquele poço "possuía as maravilhosas virtudes da fonte da juventude, onde Juno se banhava para parecer sempre jovem e bonita ao poderoso Júpiter"; e para acrescentar encanto à lenda, inventavam que ali Iracema, a tabajara, descansava à sombra de cajueiros, quando voltava de seu banho na lagoa de Parangaba.
Os homens saíam do banho vibrantes, deliciados com o frescor da água, e comentavam, "É maravilhoso! É ideal!" Daí teria surgido o nome. Mas é verdade, também, que o clube recebeu o nome do local onde se reuniam os doze amigos: Sítio Ideal. Ali, naquela chácara num bairro chamado de Damas porque era repleto das perfumadas damas da noite, foi fundado o clube em sua primeira sede. A segunda, balneária, foi na Praia de Iracema. A de minha infância é a terceira.

A história do clube é repleta de episódios como este: pouco antes da Guerra veio a Fortaleza um vaso alemão; os oficiais desembarcaram e foram conhecer o clube. Convidados para uma tertúlia noturna, souberam que a festa teria de terminar, porque as luzes da cidade eram apagadas em racionamento. Um dos oficiais, então, fez sinais em código para o navio, que fundeara em frente ao Ideal, e num instante dois imensos holofotes do navio foram acesos sobre a festa, que pôde continuar noite adentro, bem iluminada. A força desse clube era tão grande, como padrão de comportamento, que na minha infância, quando em Fortaleza uma pessoa se arrumava bem, comentavam: "Parece que vai ao baile do Ideal!"
Ana Miranda é escritora, autora de Desmundo, Dias & Dias, Yuxin e outros.

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