sexta-feira, 2 de outubro de 2009

"'Iraçéma Or Honey-Lips' e o lorde inglês", crônica de Ana Miranda para O POVO (02.10)


A Casa de José de Alencar, pelas mãos do cearense Tarcísio Garcia
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Uma das figuras mais fascinantes e perturbadoras desta vasta humanidade é sir Richard Francis Burton. Admiro-o de longa data, a partir de um ensaio belíssimo de Borges, Os tradutores das Mil e uma Noites, em que o escritor argentino introduz os feitos do lorde aventureiro autor de uma das versões mais lascivas desse clássico. Burton era apaixonado pelas viagens, pelas inumeráveis maneiras de conhecer o outro e as maravilhas remotas. Além de falar umas quarenta línguas e dialetos, o explorador inglês tinha um impressionante dom de mimetismo que lhe permitiu peregrinar às cidades santas da Arábia como um verdadeiro muçulmano, beijar a Pedra Negra adorada na Caaba, ou, como dervixe, praticar a medicina no Cairo, a fim de penetrar os segredos dos misteriosos habitantes daqueles mundos opostos. Esteve na vanguarda das forças de ocupação da Índia, atravessou o Velho Oeste americano numa diligência em plena Corrida do Ouro... Comandou em 1858 uma expedição em busca das fontes secretas do Nilo, o grande mito geográfico do século 19, acabando por descobrir o lago Tanganica, no coração da África. Em suas viagens, ultrapassava os limites do humanamente insuportável.
Quando vinha de Harrar, cidade vedada aos europeus, no interior da Abissínia, foi atacado por somalis que lhe deixaram uma profunda cicatriz no rosto, desde então jamais dissociada de sua imagem, que se tornou ainda mais inquietante.
Essas odisséias eram comuns na época em que a Inglaterra estendia seus domínios. Os países criavam sociedades geográficas para promoverem naturalistas aventuras “paradisíacas”, como a do famoso Livingstone, personagem da anedota sobre a fleuma inglesa, na qual, ao ser reencontrado maltrapilho, depois de anos perdido nas florestas Ujiji, seu salvador teria pronunciado a antológica frase, “Doctor Livingstone, I presume”. Alguns autores literários do Romantismo foram contaminados pela paixão da viagem, como Goethe, lorde Byron, Shelley, Keats ou Wordsworth. Mais tarde, Flaubert, e Rimbaud.
O capitão Burton foi o maior dos viajantes, não apenas pelo que empreendeu, e como o fez, mas por ter escrito relatos extraordinários sobre essas experiências, formando um acervo fabuloso de conhecimento etnológico, antropológico, avant la lettre. Ele era capaz de fabricar textos minuciosos e longos, com abundância de notas explicativas sobre cotidiano, práticas religiosas, artes, mitologia, ou costumes eróticos dos povos observados; consta que alguns instantes passados num jardim lhe poderiam inspirar umas quarenta páginas de observações inéditas.
Deixou escritos 72 volumes, sobre as montanhas azuis de Goa, sobre um hermafrodita das ilhas de Cabo Verde, ou entrevistas nos campos de batalha da Guerra do Paraguai. Burton desaparecia por meses, sem dar notícias, envolvia-se com nativas, voltava aos trapos e doente, era o tipo de homem que nenhuma mulher escolheria para casar. Mas Isabel Arundell foi sua apaixonada mulher por toda a vida, ficando conhecida historicamente pela beleza, e pelo imperdoável ato de queimar manuscritos do esposo, como O jardim perfumado de Nafzauí.
Burton, claro, esteve no Brasil. Isabel conseguiu uma transferência e o casal aportou em 1864 na cidade de Santos, onde ele seria cônsul. Mas preferiram residir serra acima, na pequena e provinciana São Paulo, mais fresca e saudável. Subiram a serra com a bagagem, saltando na estação da Luz ainda em construção. Alugaram um casarão agradável, antigo convento no alto da ladeira do Carmo, de onde se descortinavam as várzeas inundadas do Tamanduateí. O casarão de sete quartos foi caiado por Isabel, e Burton instalou-se num estúdio amplo e fresco, para seu febril exercício matinal. Ali mantinha onze mesas, cada uma destinada a um manuscrito: a tradução de Lusíadas, a do relato de Hans Staden, a das Mil e uma noites, a de Uruguai, de Basílio da Gama, entre outros.
E, para minha imensa surpresa e júbilo, realizou com Isabel a tradução de Iracema, de José de Alencar, sob autorização do autor. Fiquei imaginando se Burton e Alencar não se conheceram, pois o cônsul passou uma temporada no Rio de Janeiro, entre festas e encontros com o casal imperial. Casado com uma inglesa, José de Alencar nessa época vivia na Corte, como jornalista e escritor. Essa tradução foi publicada em Londres no ano de 1886, com o gracioso título de Iraçéma Or Honey-lips. Burton era mesmo genial.

ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

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