sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Crônica de Raymundo Netto pelo O POVO e para O POVO (06.11)


Crônica

Maracajá... JÁ!
Às margens da lagoa que lúcia e lenta soluça, a avarandada rotina da casa grande do Sítio Castelo era perturbada pela chegada de dois homens que contendiam entusiasmados: Demócrito Rocha e Antônio Garrido.

Demócrito, ainda ao primeiro degrau, vê a filha caçula ladeada a amiga, e anuncia:
— Lucinha, minha filha, trouxe o Garrido para almoçar comigo. Você sabe que eu não gosto de almoçar sozinho. Acredita que ele está tentando me convencer a criar um novo suplemento literário para o jornal?
— Pois é, dona Lúcia — confirma o convidado, em mangas de camisa —, há 80 anos “O POVO” lançou o “Maracajá”, e por que não aproveitar que estão publicando tão boas revistas no Ceará como “CAOS Portátil”, “Para Mamíferos”, “Pindaíba” e a “Literapia” e não lançar um suplemento literário, mesmo que aos domingos? A literatura está em efervescência por aqui: modernistas e passadistas, muitos escritores jovens, blogueiros, muita produção independente, eventos literários todo santo dia...

Assim, afastando um Zamenhof esquecido, sentaram-se ali mesmo em escuras cadeiras de espaldares altos, enquanto Lúcia acrescia o nome do novo amigo da casa em um caderno de pautas: “Antônio Garrido, poeta”.

A Adísia [Sá] dirigindo-se ao velho periodista — que após assentar com as mãos o cabelo penteado, desabotoava, a altura da barriga, o paletó — contou:
— Demócrito, um marido, certa feita, perguntou à mulher: “Querida, diga-me honestamente, você já dormiu com outro homem que não fora eu?”. A mulher sorriu e respondeu, graciosa: “Não, meu amor, só dormi com você, viu?” O marido suspirava aliviado, quando ela continuou: “Com os outros eu não dormia, não... ficava acordada, mesmo!” Boa essa piada, né? Eu gostei muito... “Com os outros eu não dormia...”
Gargalhadas dispersaram-se ao frescor da tarde frouxa. Demócrito voltou-se, então, ao afoito amigo e relembrou:
— Garrido, o Otacílio de Azevedo e o Orlando Luna Freire, que trabalhava com clicheria e com uma tipografia ao lado do meu consultório, me procuraram pedindo ajuda para publicar uma revista literária. A capa seria colorida, teria charges e clichês, uma novidade... Decidi lançar a “Ceará Illustrado”. Gostei tanto da bichinha que eu mesmo passei a distribuí-la nos quiosques e cafés da praça. Foi um sucesso! O mesmo ânimo eu tinha, anos depois, quando criamos os “bancos” como o da “Opinião Pública” cujo presidente era o Carlos Miranda.
— Lembro demais, Dr. Demócrito — afirmava Garrido ao colher, na travessa da mesa, um dos famosos pastéis da casa —, as pessoas brigavam por ela. E é esse o espírito da coisa... Inovação! E quando o senhor distribuiu os 300 cupons de votação na campanha de eleição do “Príncipe dos Poetas Cearenses”? Muitos leitores passaram a criticar os votantes que, segundo eles, não tinham propriedade para eleger ninguém, enquanto outros afirmavam que no Ceará nem poeta tinha!
— O pobre Galeno só teve 12 votos... Maldade... Ganhou o Padre [Antônio Tomás] mesmo!
— Vamos lá, homem, o povo precisa de mais vozes que lhe falem ao sentimento... O seu jornal e o “Maracajá” repercutiram em todo o país como veículos de divulgação do Modernismo cearense. Criaram polêmica, fizeram história. Todos os poetas vanguardistas modernos, como o Jáder de Carvalho, Rachel de Queiroz, Mozart Firmeza, Mário de Andrade, Filgueiras Lima, Edigar de Alencar, Sidney Neto, Franklin Nascimento e mesmo eu, fomos acolhidos por eles naquela época. Sei que isso acarreta mais despesas, mas lembro bem que quando o Sr. Chateaubriand quis comprar o seu jornal você não o vendeu, não foi?
— Claro... e você, venderia um filho?
— Nunca. E o seu jornal, Demócrito, não nasceu para defender os interesses do povo, ferir as oligarquias dominantes, clamar contra os desmandos dos governantes e defender o desenvolvimento do nosso Ceará? O “POVO” já é um patrimônio nosso!
— Mas não é ofício fácil, rapaz. Cheguei a ser surrado na frente de todos, certa tarde, na praça do Ferreira. Os policiais do Desembargador Moreira da Rocha me espancaram com rebenques e pontapés e tiveram a ousadia de me levar à Photo Sales para fotografar-me, ainda sangrando, como prova do serviço bem-feito. Ah, que eu daria tudo por essa foto hoje... — riu, passando a mão na testa lembrançosa.

A Ceará Rádio Clube, PRE-9, executava um sucesso do grupo “Quatro Ases e Um Melé” quando Garrido foi pegar outro pastel e flagrou o Biel, cabrito de estimação, surrupiando-os com um olhar moleque. Nisso, Demócrito, cruzando as mãos por trás da cabeça, divagava:
— Eita que bateu-me uma saudade das tertúlias da casa do cajueiro torto... Só a Creuza, mesmo... “Saudade que ainda espera, é lembrança...”, pensou. — Sabe, Garrido, os “modernos” de São Paulo metiam excessiva erudição no que faziam e bancavam sisudez. Nós cearenses somos alegres por índole. Lá, os rapazes para fazer a sua antropofagia precisavam dar o laço à gravata. O modernismo que eu entendo é esse que nós fizemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante...
— Não esquecendo que o espírito modernista já existia em nossa “Padaria Espiritual”, em seu programa de instalação, trinta anos antes da Semana de Arte Moderna. É como o Guilherme de Almeida, ao nos visitar, disse: o modernismo não proveio de ninguém. Existe no ar de depois da guerra, como a gripe espanhola e o bolchevismo. É contagioso...
— E você vai acabar me contagiando com essa sua conversinha, poeta... Ah, toda vez que dou ouvidos a você... — levantou-se, de súbito: — Olhe, filha, não vamos esperar o almoço, não. Iremos agora mesmo para as bandas do bar do Silva. Já, já, estarei de volta. Deixe a rede pronta, ouviu?
— Mas, papai, vá beber não que o senhor sabe que fica valente... — alertou, zelosa.
— Pode deixar, Lucinha, eu preciso trocar umas ideias com outros amigos... e trago cá comigo a velha “imunidade”... — abraçou e beijou a filha e, ao cumprimentar a Adísia, revelou: — Minha amiga, dentre os sábios, industriais, poetas, historiadores e literatos, o tipo não mais admirável, porém, mais simpático, mais do século, mais original, mais moderno, é o jornalista periódico. Abracei essa profissão por instinto, quando ainda lhe não podia medir bem toda a importância. Confesso que ainda não tive um só dia de arrependimento, e que apenas a força das circunstâncias me afastará da carreira começada. — voltando-se ao poeta, esperançou: — Quem sabe, né, Toninho, esse tal “Maracajá”, ou quiçá outro suplemento, os tempos são outros, não saia mesmo?
E foram-se, sob o sol que tinia, lado a lado, os dois homens vestidos de ideias, caminhando por entre coqueiros e plantas emplacadas delicadamente no jardim colorido do vermelho das araras e do canto dos sabiás. As pétalas de murta, estouvadas no chão, sacolejavam com o vento de novembro deixando o varandado para trás. As lembranças persentiam por entre pesadas talheres que tilintavam sob a inicial bordada ao guardanapo e com o vozeado alegre de crianças do passado à comprida mesa branca de almoço. Estalando as colheres de cremosos doces de leite, a memória perfumosa do tempo emergia viva como NOTAS do velho rio, artéria aberta, que na pena do poeta vai morrendo e resistindo... morrendo e resistindo... resistindo sempre... como as rochas.

Demócrito Rocha (14.04.1888 – 29.11.1943) , poeta, jornalista e orador, nasceu na Bahia. Aos dois anos perdeu o pai, e aos cinco, a mãe. Aos 12 anos trabalhou como ajustador em oficina de reparação de locomotiva em Estrada de Ferro. Veio morar em Fortaleza como telegrafista (1912) e casou-se com Creuza do Carmo (09.02.1915) com quem teve duas filhas: Albanisa e Lúcia. Em 1921 formou-se em Odontologia; em 1924 publicou “Ceará Illustrado”; em 07.01.1928, funda o jornal “O POVO” e em 1929 lança o suplemento “Maracajá”. De 1935 a 1937 foi Deputado Federal. Pertenceu à Academia Cearense de Letras e Instituto do Ceará. Faleceu, vítima de tuberculose.

ANTÔNIO GARRIDO: pseudônimo com o qual Demócrito Rocha assinava sua produção literária, inclusive a do famoso “Rio Jaguaribe”. Algumas das falas de Demócrito e Garrido são adaptações livres de textos de Demócrito Rocha. A pesquisa de texto baseou-se principalmente em “O Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos” de Sânzio de Azevedo.

Raymundo Netto é escritor. Contato:
raymundo.netto@uol.com.br

Um comentário:

  1. Interessante registro, tem pessoas que você acha que nunca existiram pq elas se tornam mitos.
    A cada dia seu blog se torna melhor. Parabéns.

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