sábado, 20 de fevereiro de 2010

"Costurando o Tempo: Maracatus", crônica de Ana Miranda para O POVO (19.02)

Foto: Diário do Nordeste


Sempre tive vontade de assistir às festas antigas do povo no Ceará. São a voz e a alma do lugar, relíquias que o tempo vai consagrando, de sabedoria, lutas, desespero, exílio, sonhos, segredos...


Foi com aquele mesmo sentimento de Fernando Pessoa ao ler pela primeira vez padre Vieira que, domingo de Carnaval, sentei-me com amigos na arquibancada para ver nossos maracatus.


Eu havia conversado com Descartes Gadelha, sua voz profunda de espírito me passara senhas poéticas das origens, das palavras, da música, do sentimento, como que pintando, esculpindo o maracatu. Catimbozeiro, loa, macumba ou reza, umbanda martirizada, rituais ao pé de macaúba, religião da caatinga, africano guerreiro, maracás, índio solto nos seus cálculos, a alma inconstante da pessoa na natureza... Contou do trabalho comovente e dedicado nos barracões, as mãos cortando, costurando, bordando, construindo, numa generosidade quase inexplicável, para a realização de um ritual que está no sangue. Costurando sonhos, lembranças, costurando o tempo...


O maracatu é mesmo uma força de sentimentos e heranças. A loa começa a soar de longe, plangente, bem marcada pelo ritmo e pela letra que nos convocam ao coração, trazendo ecos de lamentos escravos e a alegria religiosa de um dia em liberdade. Caixas marcando as batidas graves, surdos, bumbos, ganzás, chocalhos e ferros formam as baterias. As vozes dos macumbeiros, ou cantores de loa, são melodiosas e gentis. E lá vem o estandarte a apresentar o nome do maracatu, seguido de lampiões a guiar o caminho e o personagem Baliza a dançar acrobacias. Depois vêm os cordões, de africanos, índios, mucamas de açafates. Surge o balaieiro em veste ampla e cesto de frutas ou flores na cabeça, faz lembrar o escravo que vendia nas ruas a mando do senhor, o chamado negro de ganho. E vem o casal de pretos velhos com suas bengalas e cachimbos, seguido da corte, nobres africanos vestidos como príncipes, condes, marqueses, apresentando o rei e a rainha em roupas suntuosas, lamê, veludo, cetim, mil lantejoulas e brilhos. Alguns maracatus trazem um grande boneco, ou carros com personagens.


Ao final, vêm os cantores de loas e a bateria. Uma formação singela, perto de suas raízes, cheia de significados que carregam uma longa história. O cortejo, à exceção dos índios, vem com o rosto pintado de preto, máscara que relembra e homenageia sua origem. Também há maracatu com música mais alegre e rostos pintados de branco. Os maracatus, seja como forem, são lindos e emocionantes. Imaginando o que há por trás dessa festa, encontrei palavras aqui e ali, como um ensaio de Calé Alencar, músico e pesquisador que faz parte desses cortejos e os estuda. E eu, também, costurando o tempo... vi africanos capturados, presos nos libambos, arrastados ao porto e jogados nos porões dos navios negreiros, sem distinção de família, tribo, hierarquia religiosa ou cultural, ali estavam reis, príncipes, guerreiros, sacerdotes, oficiais, lavradores, mães, crianças...


Nus, feridos, esmolambados, traziam como riqueza apenas suas lembranças. Uns desembarcavam no Ceará, onde eram vendidos e iam ao trabalho escravo nas fazendas, nas casas, silenciados e impedidos de reviver suas religiões e costumes. Desde a escravização medieval em terras lusas, aproximados do Cristianismo, mas deixados às portas das igrejas, eles encontraram em Nossa Senhora do Rosário uma representação do oráculo Ifá, que fazia previsões: a santa usava um colar de rosas, rosário, parecido com o colar do porta-voz do orixá Orunmilá. Em Fortaleza foi erguida uma capela, em 1830, dedicada à santa dessa devoção, e os escravos formaram, como em outros lugares, uma irmandade reconhecida pela Assembleia Provincial do Ceará. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Capital levantava fundos para proteção dos escravos, pagava funerais, dava pensão a viúvas, e seu estatuto configurava a festa de coroação dos seus reis. Vendo o tom cristianizado da festa, senhores davam folga a seus escravos um único dia no ano, 7 de outubro, dia da santa. No interior da capela, entre altares dedicados a santos de feições negras, como santa Ifigênia princesa de Núbia, ou são Benedito, escravos celebravam as coroações dos reis do Congo. Dessa festa, desse dia de liberdade, em que as lembranças de cantos, de cerimônias, ritualizam a dignidade humana, derivam os nossos maracatus.


E lá estava o povo, a esperar e aplaudir. Ei tum tum tum tá, está contando as estrelas pra nos alegrar...

ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras

Nenhum comentário:

Postar um comentário