sábado, 6 de março de 2010

"Bibliófilos em Fortaleza", crônica de Ana Miranda para O POVO (5.3.2010)

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José Mindlin, o querido José, mudou-se. Da casa ampla no Brooklin Paulista, cujos jardins e salas deram lugar a fabulosas bibliotecas, ele foi para os locais sagrados onde vivem os livros. Sua alma bateu asas de nosso mundo, foi-se para o reino infinito das páginas e letrinhas. O coração de quem o conheceu se aperta mais e marejam os olhos em saudades. Mas ele deve estar ainda mais alegre, meigo, amigo, benfazejo, vivendo onde sempre viveu. Pessoa realmente adorável, em sua afabilidade, cumprimentava todos, e tinha uma especial atenção para com aqueles que parecem invisíveis nos seus singelos ofícios. Sabia fazer uns ovos mexidos maravilhosos, e pouco ligava para as formalidades. Era tão espirituoso... Certa vez recebeu carta de um amigo sugerindo que escrevesse um livro de memórias, dando até um alinhavo do livro. No dia seguinte, Mindlin apresentou-lhe volumosos originais que correspondiam ao livro idealizado, dizendo-lhe que passara a noite e a manhã escrevendo, para pasmo do seu conselheiro. Só depois revelou que havia anos se debruçava sobre os originais, seu comovente depoimento intitulado "Uma vida entre livros".


O sentimento que ele nutria pelos livros era cristalino, e ele nos transmitia aquela carícia, aquele enlevo, pondo em nossas mãos algo que parecia retirar de um nebuloso reino onde o tempo não impera. Ainda menino tornou-se um apaixonado "encontrador" de livros, dotado de um sentido quase sobrenatural para esquadrinhar ou reconhecer cada exemplar. Demorava às vezes anos e anos à procura de um livro e, quando o achava, seu coração "batia mais forte".


Cada um de seus livros tem uma história de sonho, garimpagem, encontro, desencontro, reencontro... "A gente procura o livro, e o livro procura a gente". Viajava pelo mundo no rastro de algum incunábulo, mantinha uma rede de comunicação em busca de certos exemplares, fazia sacrifícios de todo tipo, para conseguir um volume precioso. A sua seção de livros raros é de tirar a respiração até de um leigo. Todo esse trabalho ele realizava com a alegria de uma criança brincando de esconde-esconde, desde quando, aos sete anos, saía pelas livrarias em busca de obras infantis. Ainda menino de calças curtas, comprou seu primeiro livro raro, um "Bossuet marronzinho, pequeno assim".


Conseguiu reunir ao longo da vida um tesouro incalculável, contido em cerca de trinta mil obras, sendo dez mil raras, duas mil raríssimas, entre edições princeps, manuscritos, pergaminhos, livros de viagens, aquarelados, litografados, dedicados, cartas históricas, edições requintadas... uma verdadeira arca de Noé que deixa de herança a todos nós, pois a maior parte será transformada em biblioteca universitária. Mindlin adorava mostrar seus livros. Com extrema sensibilidade escolhia nos apresentar aqueles que sabia terem mais laços com nossa alma.


Na primeira visita que lhe fiz ele trouxe um manuscrito de padre Vieira que me fez estremecer, num misto de sentimentos. Mindlin era acima de tudo um leitor; os livros lhe serviam mais para a libertação do espírito. Como fala o poema de Emily Dickinson, que ele sabia declamar, como sabia declamar tantos outros, e que ele mesmo traduziu, e traduziu apenas dois poemas: Sorveu palavras preciosas, Sentiu seu ânimo mais forte; Esqueceu-se de que era pobre, E que era apenas pó. Dançou em dias sombrios, E essa conquista de asas lhe veio apenas de um livro. Que liberdade traz um espírito sem peias!


Bibliófilos são os que amam, pesquisam e conservam livros raros; eles formam uma confraria universal de muita coesão, cujos membros se apoiam mutuamente na busca de alguma raridade. Sua sociedade nacional tem sede aqui em Fortaleza, e foi através de José Mindlin que se deu a minha aproximação do bibliófilo que preside essa associação. Trata-se de outro José, o Augusto Bezerra, também pessoa admirável, a mesma meiguice e pertinácia, o mesmo amor extremado pelos documentos e livros.


Mindlin admirava muito nosso bibliófilo, sobre sua coleção fazia os mais sinceros elogios, lisonjeando o colega cearense. A coleção reunida por Bezerra é extraordinária. Ele possui, por exemplo, manuscritos de Vieira e cartas de Pero Vaz de Caminha. Constam ali preciosidades literárias, como todas as primeiras edições de Alencar. Tão zeloso e apaixonado, foi a ele que Rachel de Queiroz legou seu acervo, tanto livros, como fotos, cartas, objetos, manuscritos, o que tinha a preservar. Como dizia José Mindlin, para alguns seria impossível viver num mundo sem livros.


ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. amliteratura@hotmail.com.

2 comentários:

  1. Grande Mindlin, que já era imortal mesmo estando entre nós. Sua paixão pelos livros era incomensurável. Seu acervo é um sonho de consumo para qualquer intelectual. Lembro de ter assistido a uma entrevista do mesmo, no qual ele apresentava orgulhoso o original datilografado de Grande Sertão: Veredas, com anotações de segunda pauta, do singular Guimarães Rosa. Isso só pra gente ter uma ideia da grandeza do seu acervo.
    E que bela crônica de Ana Miranda.
    Parabéns, Raymundo, por difundir tão bem a arte, no seu conceito mais plural.

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  2. A Ana como sempre fantástica!
    Levarei essa crônica para o CLUBE DE LEITORES do CCBNB Cariri em abril.
    Valeu, grande Ray!

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