sexta-feira, 23 de abril de 2010

"Cortina de Memórias: à madrinha Rachel", crônica de Raymundo Netto para O POVO

Em 2010, quando se completam cinco anos de lançamento de Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, obra que me apresentou à literatura cearense, é em abril que comemoro, agora com "vocês" (crente que mais de um sobrevivente ledor me resta), três anos de crônicas absurdas para o caderno Vida & Arte de O POVO e dois de trabalho com políticas do livro e da leitura na Secretaria da Cultura do Estado. Tanto o convite para escrever n’O POVO quanto o de trabalho na Secretaria vieram exclusivamente por conta do Cadeiras..., não resta dúvida. Também devo ao despretensioso romancete, a maior parte dos amigos que hoje tenho — alguns desafetos também, é verdade, mas insignificantes —, assim como a lida de escravo branco, os momentos estranhamente divertidos, as noites em companhia de estrelas que brilham sem vaidade, uma caixa de correio repletas de nomes, um blogue e a biblioteca cujo destino principia-se trágico.


Quando a Regina Ribeiro, num descuido da generosidade, me convidou para escrever no jornal, orientou: “Você tem que escrever sobre Fortaleza. Por que não escreve como fez no Cadeiras na Calçada?”


Na época aceitei. Nunca dizia não. E passei a refletir sobre o que escrever. Não queria reescrever o Cadeiras..., e sim, fazer alguma coisa de diferente, uma linha definida que, em fio, encantasse o caminho dos demais textos que se seguiriam. Preocupava-me, pois tinha apenas dois anos de escriturices e não queria decepcionar a convidante. Mas escrever sobre o quê?


Foi numa quadra invernosa bonita de chuva, mês de abril. Habitualmente ia à rua a fotografar minhas casinhas velhas de paredes pintadas por limbos, quando sentei no banco da estátua de Rachel de Queiroz, na Praça dos Leões. Olhando para a escritora, lembrei que fora cronista no mesmo jornal. Coroou-me a memória da lembrança de sua Crônica nº 1, texto publicado na revista O Cruzeiro, em 1945. Nele, Rachel, diante do convite para publicar crônicas, travava uma tímida apresentação ao futuro leitor e tenta conquistá-lo traçando “regrinhas” e expondo os seus anseios, muito embora “há anos sabia ser infalível o resultado da estrela da manhã”.


Corri para casa. Escrevi. Li e reli o meu rascunho diversas vezes até enviá-lo e vê-lo estampar uma manhã de março de 2007:


“Numa dessas manhãs chuvosas em que me dá uma vontade doida de sair para o centro da cidade a fotografar prédios antigos, estava num dos locais mais queridos para mim: a praça dos Leões. (...)Sentei-me num dos seus bancos de madeira, sob as árvores enegrecidas, e pus-me a pensar no tema para a crônica do jornal. Afinal, o que escreveria para vocês? Ao meu lado, a dona Rachel de Queiroz, que por ali também curtia a fresca na praça, ria-se da minha preocupação que já não lhe estranhava. Ao pescoço, desenhava-lhe apenas um discreto colar de contas. Tinha as pernas cruzadas, os braços de Clotilde levemente pousados sob curtas mangas, as mãos sobrepostas e, com vagar, discorria:
— Divertir um pouco o tédio alheio é tão gratificante... Ah, mas não pense em escrever sobre política... Não fale em política, por favor... azeda tudo! — sorrindo, bateu as pontas dos dedos nos lábios — Cala-te boca, Rachel...”


Comecei assim, com A Moça do Zepelim Prateado, minha crônica nº 1. Recordo, num exercício afetivo, dos diversos e-mails recebidos naquele dia. Inclusive, de telefonemas de amigos da Rachel que juravam de pés juntos não lembrarem de mim, apesar de conhecerem os mais próximos da protagonista. Dizia-lhes: "Não a conheci, nunca ouvi a sua voz, a não ser a que trazia em seus livros". Era decepcionante. As pessoas pareciam ter esperanças de encontrar uma nova pista, uma outra nova peça de sua existência e, na verdade, revelava-me apenas mais um "fingidor que finge tão completamente..."


Mas, dentre a correspondência, um colega me interrogou: “Quero saber até quando você vai conseguir sustentar esses encontros...” Passados três anos, a resposta ainda me salta desafiadora. Tive o privilégio de dividir crônicas com José de Alencar, Quintino Cunha, Ana Miranda, Audifax Rios, Sânzio de Azevedo, Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro, Horácio Dídimo, Socorro Acioli, Augusto Pontes, Milton Dias, Airton Monte, Moreira Campos, Raymundo de Menezes, Clóvis Beviláqua, Alcides Pinto, Otacílio Colares, Eduardo Campos, Francisco Carvalho, Demócrito Rocha, Nilto Maciel, Lívio Barreto, Ribamar Lopes, Jorge Pieiro, Ramos Cotoco, Juca Fontenelle e alguns outros, e vejo ainda tantos nomes a serem lembrados, explorados e revividos, e esta é a forma pela qual eu contarei a minha cidade, Regina: pelos seus escritores! Dizem-me por aí: não seria melhor falar de Drummond, Clarice, Manuel Bandeira? Respondo: Não, versarei sobre os escritores daqui, os cearenses, mesmo quando condenado à “localidade” como me alertam constantemente.

De então, passei a ouvir comentários sobre as crônicas, sabê-las agradando aqui e incomodando ali, fixadas em paredes, publicadas em blogues, distribuídas para amigos, jogadas na lama, enfim, vivas e livres. Muitos presentes elas me trouxeram, muitos novos amigos me apresentaram, minha vida mudou e ainda muda a cada publicação, por mais incrível que possa parecer, como num Zepelim que prateia os sonhos inocentes de uma Tangerine Girl.

Escrever é perigoso, hoje eu sei. Uma delícia de perigo...

Raymundo Netto. Contato: raymundo.netto@uol.com.br blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com.br

Um comentário:

  1. Gosto de correr perigos, por não ter nada melhor o que fazer. Assim que nem você. E, desta forma, a escrita nos convoca e nos rendemos à sua sadice.

    Sempre considerei Tangerine Girl um conto, mais do que uma crônica, e ai de nossa madrinha Rachel se se chacoalhar de transtorno lá de riba. E sempre acreditei que eu era a única pessoa no planeta que gostava desse conto, rá! Bom saber que você também aprecia demais da conta, rapaz.

    Aliás, alguns bimotores do exército teimam em fazer da sua área de treinamento diário o telhado de minha casa e lá vou eu, todo santo dia, ao me deparar com esses pássaros camuflados lembrar de Tangerine Girl. E quem sabe não me sinto um pouco que nem ela também.

    Tenho "póbrema" em escrever crônicas. Sempre acho-as tolas e sem utilidade e por isso pouco me arrisco nesse campo. Talvez a dificuldade maior tenha surgido por ter lido textos do Luís Fernando Veríssimo, muitos dos quais não apreciei e não tenho vergonha alguma de dizer isso. Diferente de como Rachel escrevia, e muitos dos nossos (e isso inclui vosmicê, sem demagogia), ao ler LFV pouco do que ele escreve me acrescenta, comunica e gera reflexão consistente. Piada que degenera política, outras raças e divagações bobas? Sinceramente, cá entre nós, tenho mais o que fazer.

    E admiro seu trabalho, Raymundo, quando se prontificas a valorizar nossos escritores. Salvaguarda quaisquer vaidades que dentre nós exista (e quiçá esse é o maior espinho de quem escreve: ter entranhado a lâmina da vaidade na alma, pra que primordialmente combatamos ela e só assim estejamos "puros" pra sermos canal e meio do que a Linguagem quer comunicar, e não o fim em si), há que se valorizar primeiro o fruto que a terra dá, para que só depois, e bem depois, o belo fruto possa ser exportado para outras terras de limites desconhecidos.

    Obrigada por seu sim à leitura e à escrita.
    Fernanda Lym.

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