domingo, 27 de fevereiro de 2011

"Os Poetas Esquisitos", crônica de Ana Miranda para O POVO (27.2)


Meu muito espirituoso primo, Laurence, homem corretíssimo e justo e dedicado às gentilezas, diz que na próxima vida quer voltar como “esquisito”. Segundo ele, aos esquisitos são permitidos todos os despropósitos, concedidas todas as indulgências, e recebem todas as atenções. Depois de achar graça dessa veleidade filosófica, fiquei a pensar nas minhas próprias esquisitices, e nos meus amigos esquisitos, como um historiador que sempre surge feito um tufão, tropeça a cada dez passos, vai deixando um rastro de seus preciosos manuscritos soltos ao vento, e caminha tão mergulhado em pensamentos que perde o rumo e se dá conta de que está num bairro desconhecido ou num ermo qualquer. No entanto, é chamado por instituições dedicadas a mentes geniais, ou levado aos palcos para defender temas os mais complexos em debates assistidos por uma multidão de eruditos. Entre os poetas, o mais esquisito talvez seja Augusto dos Anjos, suas extravagâncias foram causa de uma vida entre sofrimentos e privações, mas também de uma poesia das mais inesquecíveis da nossa língua. Outro grandioso esquisito talvez seja padre Vieira, cujo engenho teria surgido no famoso “estalo”, e, com toda a sua erudição e eminência nos palácios reais, vivia descalço nos caminhos das missões, desbotado e rasgado, a lutar pela liberdade dos índios e contra o obscurantismo. Esquisito Gregório de Matos, que abandonou os privilégios da Sé para vagar pelos engenhos e alcouces, a viola nas costas.


Mas outro esquisito ainda me sugere um personagem, e penso nele com curiosidade e fascínio. É o poeta José Albano, que poucos conhecem, mesmo aqui em sua terra natal. Ele nasceu em 1882, neto de barões, sobrinho de bispo e irmão de presidente de província, família que lhe deu formação humanística das mais elevadas. Aos onze anos de idade foi mandado para um colégio de jesuítas na Inglaterra e depois na Áustria e na França. Voltando ao Brasil, foi estudar direito no Rio, onde privou da proximidade de grandes nomes e amigos, embora não acreditasse existir a amizade, deixando um conjunto de descrições sobre seu temperamento e sua figura de Rasputin. Causavam espanto a barba densa, o cenho franzido sobre um monóculo, o andar, gestos, palavras e maneiras singulares, de um orgulho “gerado pelo desdém e descontentamento dos homens e das cousas, do meio e do tempo”, palavras do filho de Alencar, Mário. São muitas as histórias e lendas a seu respeito, e o registro de seus costumes extravagantes, bebendo os melhores vinhos em restaurantes caros, dissipando as heranças e o dinheiro que lhe mandava a família, abandonando empregos rendosos, a fazer versos para ninguém, a vociferar contra a vida e sonhar com o néctar dos deuses. Viajou pela Grécia para ler Homero, a Weimar onde evocou Goethe, em Castela foi conhecer os percursos de dom Quixote, e repetiu a caminhada de Rousseau, sozinho, maltrapilho, entre Viena e Paris. Foi à Ásia e à África. Suas luvas furadas, o chapéu desabado, as roupas gastas e rasgadas não escondiam sua “majestade inata”, uma “beleza desdenhosa” que fazia lembrar “algum rei assírio, poderoso e displicente”, conforme o testemunho carinhoso de Luís Aníbal Falcão, que anota seu lado meigo, “louco nas coisas mais simples da vida cotidiana, lúcido para tudo quanto dissesse com a poesia”. Albano defendia como guerreiro a pureza da nossa língua que amava acima de todas, e as conhecia bem, dominava perfeitamente o francês, inglês, alemão, italiano, espanhol, grego e latim, e iniciara-se no holandês, no provençal, catalão e galego. Capaz de declamar longamente seus próprios poemas, escreveu-os poucos, preferindo versos sem ornamentos e excessos, pregando um estilo casto. Versos excelentes e belos cantados por muitos, como Manuel Bandeira, que preparou a edição póstuma de sua obra, dedicando-lhe uma introdução estudiosa e contando como o vira umas duas vezes na livraria Garnier, impressionando-se com sua figura desusada e seu ímpeto verbal. Nosso Albano foi o poeta da tristeza lírica, do esplendor divino, do tormento de espírito.


“Entendo que não tive outra alegria

Nem nunca outro qualquer contentamento

Senão de ter cantado o que sofria.”


Talvez sejam dois reinos incompatíveis, o da poesia e o da paz de alma. A musa é torturante e irreal, penetra a mente humana atormentando-a e separando-a das modorras da vida besta de que fala o poeta Drummond, também esquisito a seu modo, um caso de excesso de delicadeza, sentimento e misantropia. Afinal, quem de nós não tem seus versos e suas esquisitices?



Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras.

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