quinta-feira, 5 de maio de 2011

Sobre "Memória de Peixe", de Carlos Carvalho (crônicas)


Sempre ouvi dizer que comer cabeça de peixe faz bem à memória. Paradoxalmente, sempre soube que o peixe é um bichinho ruim de memória, de duração média de três segundos, embora ultimamente alguns pesquisadores embasbacados diante de pequenos aquários cheirando a lodo defendem — vejo bolhinhas saindo de suas bocas —, que algumas espécies podem alcançar uma memória prodigiosa de cinco meses! Depois disso, esqueça-os, pois ele também o esquecerá, e então, só nada, nada, nada...

Pois bem, caiu-me à mão, não despropositadamente, o Memória de Peixe, livro de crônicas do Carlos Carvalho, professor de Literatura e de Língua Inglesa na Universidade Estadual do Ceará. Havia ouvido falar dela, obra ganhadora do Prêmio de Literatura UNIFOR em 2009. O Prêmio é ruim porque não paga nada ao autor, oferece uma viagem besta para a terra do Obama (ou do Osama?) e a pequena tiragem de livros que produz têm um descuido gráfico que não combina com a suntuosidade do seu Campus (torço logo que venha uma segunda edição). Mesmo assim, a comissão julgadora é formada por pessoas muito habilitadas e são muitos os que se candidatam e, dentre eles, o Carlos Carvalho que, a despeito dessas considerações desabafosas, conseguiu extrair com sua Memória... do meu pessimismo, introduzido com muito esforço pela cruel desumanidade, um sorriso de luz e de esperança.

O Memória... é formado por 51 crônicas, contei nos dedos por duas... não, três vezes... ou foram quatro? Bem, não criei ainda guelras por trás das orelhas como o Airton Monte, velho cronista.

Pois sim, li suas crônicas com muita suavidade e prazer. O tempo estava bonito para chover (aliás, boa parte das crônicas do livro se passam em chuva), os lençóis frios e o papo bem humorado com o Carlos começou cedo a fazer-me esquecer de mim com “A dor e a delícia de ser o que é”. Como nessa crônica, muitas outras viriam com um ar reflexivo, intimista, introspectivo, humano. A questão era a de ele ser dado a pessoas diferentes, atrair estranhos, ter facilidade de fazer amigos e de perdê-los. Epa! Esse não era eu não, Carlos? E ele continuou a revelar: “Gente é assim: estranha!”.

Enquanto inda me “estranhava”, passou a relatar seus sonhos com Clarice Lispector (ele é fã dela e até emprestou seu nome à filhinha que protagoniza uma das peças do jogo de Memória...) e, numa experiência fantástica, sentia-lhe o cheiro do cigarro pela manhã. Fiquei a matutar esperando vir a minha hora de estrela, enquanto ele perguntava sobre o que fora feito da máquina de escrever que a escritora deitava às pernas na excitação de trabalho. Queria roubá-la, já pensou? Que atrevimento, rapaz... Censurado, mudou de assunto, pôs-se em discorrer sobre generalidades: preços de livros nos sebos, a deliquência de jovens batendo em moças (pensando serem prostitutas), a violência dos “pobres garotos ricos” contra o índio Galdino e a intolerância (temáticas recorrentes nas crônicas “E você, já matou seu mendigo hoje?”, “Ebâneo”, “Maioridade Mental”, “Meninos e meninas, um tostão cada!”, “No olho da bárbarie”, “O homem visível), a “festa do aconchego” americana, onde, pela bagatela de US$30,00, se pode garantir duas semanas de êxtase (ou pelo serviço delivery de “carinho por encomenda”), além de dicas de filmes, de livros (“livros que falam de livros”), de DVDs de shows e musicais, curiosidades como “Madame Oráculo”, o paradeiro do Belchior, a morte de Orides Fontela, o grito do poema de Manuel Bandeira, as saudades de Mercedes Sosa e Maysa, lembramentos dos tempos do Marista Cearense, das mangueiras no quintal de sua avó (parecia que ela era a minha. Seremos parentes?), do show do Edu Lobo no Dragão do Mar e, quebrando a paz estendida, sacrilegiou ao afirmar que “Se Deus existisse, teria inventado José Saramago”, finalizando com o debate sobre a Felicidade Interna Bruta, o FIB, a transformação coletiva, e a crença de que “Tudo está no olho de quem lê”, pondo em desfile as palavras que mais gosta e as que detesta.

Pois é, estava até disperso quando o Carlos voltou à reflexão, a dar cambalhotas no pensamento com a sua inquietude diante desse mundo bárbaro, desigual e injusto. Tão injusto a ponto de achar que “um John bom é um John morto”. Não, meus amigos, ele se refere ao John Travolta e não ao cantor de “Imagine”. Seria bom se todo mundo fosse assim, meio John”... Só lendo para saber, mas o que sei, é que eu também o gostaria. E falando de gente, comenta “Da arte de ser Monga” (a moça gorila, lembra?), sobre o fracassado prefácio prometido ao Mateus da Silva (artista plástico e poeta — “um dândi às avessas”) e deu para perceber que o Carlos nas horas vagas, vagueia, “sem dizer adeus”, entregue ao prazer do “ócio da mais pura vadiagem”. E foi então que descuidou e caiu no engano da poesia... era só o que faltava... A poesia bem vestida em “De antúrios, crisântemos e gardênias” — dia nublado e há vinho suficiente —, em “Ela, o arco-íris” — uma coisa que ele não aguenta é vê-la triste, com todas aquelas palavras não ditas, negadas por sua boca, mas penduradas nos seus grandes negreiros olhos —, em “Quando a primavera chegou” — Era um dia desses em que o vento balança naus em oceanos de desesperança. Quanto tudo nada mais era do que pura cinza, ela surgiu montada numa cadeira ao estilo Salvador Dali, ao estilo Bottero — e em “Olhos de chuva” — sempre que chove, lembro de pessoas que gosto e que gostam da chuva. Algumas delas parecem ter olhos de chuva!

Hoje chove. E muito. Lembrei de quem gosto e do Memória de Peixe, ambos com gosto bom de chuva e de gente.


Raymundo Netto


Para adquirir o Memória de Peixe e/ou conhecer mais do Autor: carlos.oak@hotmail.com

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