segunda-feira, 19 de setembro de 2011

"Coisas que deveriam ser distribuídas gratuitamente", crônica de Urik Paiva


Caso você seja portador da síndrome de la Tourette, aquela dos tiques nervosos, pode adquirir em qualquer instituição pública de saúde, e sem ônus financeiro, boas doses de haloperidol para seu tratamento, embora eu deva alertar que as chances de cura sejam nulas (nesse momento, sou eu quem pisco para você). A substância também pode ser utilizada em caso de surtos psicóticos (quem nunca os teve?).
Há, entretanto, outras coisas pelas quais os governos mundiais deveriam isentar a todos de pagar, numa atuação sociopolítica capaz de evitar suicídios, conflitos internacionais, finais de relacionamento, audiência para a TV aos domingos e adesão a instituições religiosas de nomes um tanto exóticos (como a Igreja Evangélica Florzinha de Jesus, de Londrina, Paraná).
Posso começar indicando o plástico-bolha, invenção estadunidense que, primariamente, serve para proteger objetos frágeis em transporte; mas é claro que sua principal utilidade é alentar a população mundial através de seu prazeroso estouro. É de se pensar o efeito que o plástico teria na guerra franco-prussiana ou no controle do ciúme do Bentinho. Caso os Estados passassem a produzir e distribuir o genial invento, o mundo seria um lugar mais zen: torcedores de times de futebol rivais se tornariam praticamente amantes, os muçulmanos deixariam Salman Rushdie quieto e os crimes passionais seriam extintos; sem falar na tranquilidade que tomaria conta das bolsas de valores, tornando-as similares aos templos budistas.
Por falar em silêncio, advogo também a presença, nas vidas humanas, de algo necessário se estamos próximos daqueles sujeitos com posses tecnológicas que não se acanham em pôr à escuta do resto do mundo, em potentes alto-falantes, seu juízo musical: os fones de ouvidos. Se estes forem conectados aos aparelhos emissores do som, reinará a paz. Porque muito provavelmente essas pessoas hão de se irritar com uma simples reprimenda à expressão de seu cânone sonoro, devemos agradar-lhes com um sorriso e um fone de ouvido, se já não houverem ido à procura do seu no órgão de direitos humanos da respectiva cidade (não o sorriso, o fone).
Nesse mesmo rumo, e pensando sempre na manutenção da presença da espécie na Terra, posso aludir aos chapéus, acessórios indispensáveis à interação sexual casual; aos isqueiros, que, mesmo para os não-fumantes, são capazes de garantir o início de uma bela amizade; às coqueteleiras, itens recomendáveis àquelas festas que podem começar com duas pessoas e terminar com o entupimento de uma residência; e aos tabuleiros de xadrez, mais fundamentais ao exercício da mente do que à composição estilística dos indivíduos na moda.
Além do que já foi dito, e assim como ao acesso à educação pública de qualidade, deveríamos ter direito a borrifadores. Neles se pode colocar, por exemplo, água (borrifá-la no pescoço castigado pelo sol de um verão me parece aplacante, bem como chamar a atenção de alguém que está sendo traído pelo cônjuge), azeite (assim você o distribui melhor no prato) e molho de pimenta (para inibir ladrões e assediadores). Só não ameace seu chefe com suco de beterraba.
Para as dores do espírito, para as tristezas infindas, para as dúvidas açoitantes, cada um de nós merecia um gerador químico de oxigênio e uma máscara, qual nos aviões, pois o voo da existência é cheio de despressurizações.
Há muitas outras coisas que poderiam fazer parte da agenda governamental de distributivos, mas para não me alongar infinitamente (não, nossa carência não possui fronteira), citarei apenas as malas, porque devemos sempre estar alinhavados à partida, mesmo que efetivamente não se saia do canto; e as bala de café, que deveriam ser incorporadas à cesta básica; e as lanternas, adequadas à insuportável sensação de interromper uma leitura noturna por conta de um avario no sistema elétrico; e viagens com tudo pago para o Rio de Janeiro; e papeis de carta, porque há muito o que se dizer aos outros; e, caso fosse realmente possível, novos corações: os nossos andam gastos de tanto palpitar.


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