quarta-feira, 16 de novembro de 2011

"Domingo", de Raymundo Netto para o Vida & Arte de O POVO (16.11)



Domingo. Onze horas. Como se marcada hora, barulhentos, acabavam de chegar. Enfileiravam-se à grade branca entreaberta por saudações breves, tomadas de rostos, beijos vãos. As netinhas em cabelos de rabos de cavalos, à frente e com solicitação do pai, apresentavam as bonecas, imediatamente esquecidas diante da tevê na sala.

Os filhos, genros e noras, à cozinha, traziam nos olhos indisfarçáveis traços da preguiça ou da curtida noite alta. Colhiam jornais e a correspondência desviada, cumprimentavam o pai a levantar sorridente da cama — sem omitir saudades — e a mãe a empunhar flores do quintal; puxavam os bancos para o oitão — área mais ventilada — enquanto outros vasculhavam a geladeira em busca das guloseimas que lá já não estavam desde a meninice.

Hora do almoço! Todos tomavam seus lugares, os mesmos e respeitados lugares, pequenas hierarquias. O avô se deliciava à larga cabeceira da mesa de pinho feita à encomenda para caber a família. A avó não sentava enquanto todos não estivessem fartos.

Uma mulher, por trás do balcão americano, com olhos postos à pia no manejo da asa de uma caneca tomada em sabão, ouvia tudo, sabia de tudo, analisava-os, percebia-lhes as mentiras, as vaidades, a disputa entre irmãos pelo amor filial, e assim costumavam seus domingos: fazer o almoço, os pratos de um e de outro, mais pratos, a sobremesa com um doce especial, a correria da criançada a pedir-lhe tudo, sem reconhecê-la nunca, sequer chamar-lhe o nome, e outros pratos. Depois disso, só solidão e silêncio. Notava-se velha e acabada. Não dava mais conta. Sabia-se apenas para servir. E só!

Num domingo diferente, postou-se à cabeceira por trás do avô. Pediu as falas com um sorriso quase terno, a espanar no ar o pano de prato. Na voz rouca e analfabeta desalinhou segredo: pôs veneno! Daquele macarrão tradicional de família, tudo acabaria ali e agora. Pronto era só isso. Desculpassem, mas não ‘guentava mais.

O jovem pai despertou. Correu desesperado por um corredor de soluços, vômitos e gritarias sufocadas em busca das filhas. Na sala, suas menininhas, felizes, limpavam com o bracinho rechonchudo o sorriso lambuzado do molho gostoso, receita da vovó.

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