domingo, 29 de julho de 2012

Entrevista de Floriano Martins com Sânzio de Azevedo



Compreende Jorge Rodríguez Padrón que o poeta deve servir ao crítico como seu guia único. Refere-se ao poeta como um todo, portanto, ao ditado de sua escritura. E completa: “porém para nos perdermos nele”. O texto como lugar de encontro, lugar de uma identificação e não de uma determinação; reflexão e não a soberba da explicação – eis o que defende o mencionado crítico espanhol. A entrevista que temos a seguir, com o crítico e historiador Sânzio de Azevedo (1938), revela a acuidade reflexiva de um importante personagem da literatura brasileira. A extensa obra de Azevedo apresenta dois títulos interligados: Dez ensaios de literatura cearense (1985) e Novos ensaios de literatura cearense (1992). Contêm ambos ensaios relevantes sobre alguns momentos básicos de nossa literatura, a exemplo de textos dedicados ao estudo da obra de José Alcides Pinto, Milton Dias, Rachel de Queiroz, Moreira Campos, Francisco Carvalho e Edigar de Alencar. Constitui ainda característica fundamental de sua obra crítica assessoria prestada à Universidade Federal do Ceará, no tocante a algumas edições importantes que tem feito circular, entre as quais Poesia completa (1996) de Aluízio Medeiros, por ele organizada e prefaciada. É bem verdade que Sânzio considera-se mais um historiador do que propriamente crítico, no que há algo de verídico, sobretudo se pensarmos em livros como A academia francesa do Ceará (1971), Literatura cearense (1976), Apolo versus Dionisos (1978) e Aspectos da literatura cearense (1982). Não convém, no entanto, separarmos memória e reflexão, visto que seus estudos não se detêm unicamente na mera sucessão cronológica dos fatos, observando lucidamente o lugar e o valor que cada acontecimento ocupa na história de nossa literatura. 

O pensamento crítico alimenta a compreensão histórica de nossa passagem por este mundo, razão porque cabe ao crítico fundar-se a partir de um diálogo perene com todas as forças que nos orientam e desorientam. Não estamos rumo à transcendência, e sim em busca de uma melhor compreensão de nossa atuação como animal pensante. Não há outro universo mais propício à crítica. Que se realize, então, como singularíssimo lugar de encontro. Neste sentido, Sânzio de Azevedo revela-se nome de extrema importância, a ser somado ao dos grandes críticos e historiadores da literatura neste país.


Floriano Martins: Entende o poeta e ensaísta colombiano Harold Alvarado Tenorio que deve a crítica agir como “comentário e reflexão sobre um objeto artístico a partir de sua própria linguagem”, concluindo que “para ser capaz de falar variadas linguagens necessitamos de muito ócio, muita dedicação ao aprendizado dessas tonalidades”. Você tem uma vida inteira dedicada ao exercício crítico. Como defende tal exercício?

Sânzio de Azevedo: Em primeiro lugar, não me considero propriamente um crítico, e sim (se isto não for imodéstia) um historiador da literatura. Claro que há procedimentos críticos na análise de textos e, por outro lado, não posso fazer história se trato de autores de hoje, o que tem ocorrido vez por outra. A meu ver, existe a crítica que eu chamaria de normativa (que pretende orientar o escritor) e a descritiva (que pretende orientar o leitor). Seriam os casos, respectivamente, de Machado de Assis e Eugênio Gomes. Se há crítica no que escrevo, estaria no segundo modelo.

FM: Segundo sua própria observação, José Albano foi um desses poetas impossíveis de ser inseridos em uma territorialidade estética única, não podendo ser convocado a compor, com exclusividade, o quadro de nenhuma escola literária de seu tempo. Isto acaso o situa em uma posição superior a todos os seus pares? Seria correto dizer que José Albano é o primeiro grande poeta cearense?

SA: Para mim, a grandeza de José Albano está na qualidade de sua poesia e não no fato de ele não poder ser enquadrado em uma corrente estética (um dos raros escritores a quem chamo de gênio foi um puro romântico: Victor Hugo). Aliás, a grandeza de José Albano (considerado por Manuel Bandeira um “altíssimo poeta”) mostra a inanidade crítica de não me lembro quem que afirmou, nos anos 20, que vale mais um poema ruim e modernista do que um que seja bom e passadista. Ninguém mais passadista do que Albano. A última pergunta não é fácil: eu diria que antes de Albano tivemos Juvenal Galeno (cuja obra tem sido subestimada), Joaquim de Sousa e Lívio Barreto. Mas Albano é, sem dúvida, um dos maiores poetas cearenses de todos os tempos.

FM: Recentemente se publicou uma segunda edição (revista e ampliada) de seu A padaria espiritual e o Simbolismo no Ceará. Como sabemos, o Simbolismo no Ceará possui uma característica singular, que é o fato de haver antecedido o parnasianismo, isto sem falarmos no aspecto do mesmo haver sido mais criador. Em teu livro observas que o Simbolismo no Ceará deu-se simultâneo “ao movimento oriundo do Paraná”, ao mesmo tempo em que mostrando-se independente deste. Quais os traços que diferenciam um do outro?


SA: Ao afirmar que o Simbolismo cearense de Lopes Filho e Lívio Barreto era independente do Simbolismo do sul do país, quis significar que ele tinha raízes próprias, não sendo caudatário do grupo da Folha Popular, como o de outros Estados, cuja origem está no Paraná. Mas há traços distintivos nos nossos poetas, uma vez que neles a influência de poetas portugueses (Antônio Nobre, principalmente) foi bem maior do que em Cruz e Sousa e seus seguidores. É interessante também o fato de a corrente aqui haver surgido na mesma época do movimento no sul, o que raramente acontece, tendo ocorrido apenas por volta de 1873, com o Positivismo da Academia Francesa de Rocha Lima, Tomás Pompeu, Capistrano de Abreu e outros. Gostei de você ter mencionado o fato de o Simbolismo cearense ter sido anterior ao nosso Parnasianismo. Esta é uma de minhas poucas descobertas…

FM: Houve um retardamento histórico do Brasil no tocante ao cultivo da poesia moderna. Enquanto ostentávamos o parnasianismo como uma novidade literária, países europeus e hispano-americanos já envolviam-se diretamente com o Modernismo. Apresentava-se então, entre nós, um quadro de subserviência total no tocante a padrões literários já ultrapassados. Como esta situação iria influir no surgimento do movimento modernista de 1922? Segundo observa Ivan Junqueira, verifica-se neste uma primazia de um “nacionalismo exacerbado que tangencia o fascismo”. Penso também em um outro grave equívoco: enquanto inúmeros poetas hispano-americanos (tanto modernistas quanto vanguardistas) rejeitavam veementemente o Futurismo de Marinetti, o Brasil o recebia de braços abertos, a partir da exaltação que lhe fazia Oswald de Andrade.

SA: Fala-se muito no retardamento histórico do Modernismo no Brasil, mas ninguém se lembra de observar que o mesmo aconteceu com outras correntes literárias. Tomando por base a França, de onde vinham as ideias (inclusive algumas do Modernismo, com Apollinaire, Max Jacob, Tzara e outros), veremos que o Romantismo, inaugurado no Brasil por Magalhães em 1836 (com os Suspiros poéticos e saudades), já existia em 1801 no Atala de Chateaubriand, para não irmos à Alemanha, onde Goethe havia publicado o Werther em 1774! O Parnasianismo, que se prenunciava vivamente nos Esmaltes e camafeus (1852), de Gautier, e se implantou na França depois do Parnaso contemporâneo (1866), desembocou aqui em 1878, com as Canções românticas, de Alberto de Oliveira. O Simbolismo, que teve como precursor Baudelaire, com As flores do mal (1857), no ano de Madame Bovary, de Flaubert, explodiu com o manifesto de Moréas, em 1886, e no Brasil, apesar das notas precursoras da década de 80, só se inaugura com o Missal e os Broquéis de Cruz e Sousa, em 1893 (ano do Phantos, de Lopes Filho). Iria ficar como uma corrente subterrânea, como diria Andrade Muricy, sem desbancar o Parnasianismo. Mas é bom que se lembre que Os troféus, de Heredia, um dos frutos mais radicais do Parnasianismo francês, foram editados lá nesse ano de 1893, e com grande repercussão. Quanto ao Modernismo hispano-americano, era, como disse Gilberto Mendonça Teles, uma “mistura de formas parnasiano-simbolistas”, com predomínio destas últimas, acrescentemos nós. É pelo menos o que se pode depreender da leitura dos versos de um Rubén Darío, de um Santos Chocano ou de um Amado Nervo. Quanto ao fascismo contido no nacionalismo de alguns modernistas da primeira hora, sabemos que Plínio Salgado era do grupo Verde-Amarelo, e Affonso Romano de Sant’Anna já apontou o caráter estado-novista (ou seja, fascista) do Martim Cererê, de Cassiano Ricardo. O que faria contraponto com o comunismo de Oswald de Andrade e, depois, Jorge Amado e Graciliano Ramos. No Ceará, tive oportunidade de apontar notas integralistas na poesia de Sidney Neto, o que por sua vez contrastaria com o comunismo de Jáder de Carvalho.

FM: Uma das provas da grande agitação intelectual que se vivia no Brasil dos anos 20 é justamente uma quantidade enorme de revistas literárias publicadas em vários locais. No Ceará não tivemos propriamente uma revista, mas houve uma notável repercussão a partir da publicação do suplemento Maracajá, do jornal O POVO. Embora a Revista de Antropofagia tivesse reproduzido alguns artigos de Maracajá, havia uma certa rivalidade entre ambas facções modernistas. Em seu livro O Modernismo na poesia cearense [com previsão de lançamento em 2ª edição, ampliada com mais ilustrações e a publicação do fac-símile de Maracajá, a ser lançado em 2012] há referência a um incidente envolvendo um artigo de Antônio Garrido, por exemplo. Quais as causas diretas dessa “rivalidade”? E quais relações mantinham os diretores de Maracajá com outras publicações da mesma época?

SA: Não vejo propriamente rivalidade, mesmo entre aspas, entre a Revista de Antropofagia, de São Paulo, e Maracajá, de Fortaleza. Pelo contrário: acho incrível o pessoal haver concedido espaço à gente do Ceará, o que não era usual. No que tange ao incidente, o que aconteceu é que os paulistas não quiseram transcrever as críticas que Demócrito Rocha fizera ao tipo de Modernismo deles. Sobre a repercussão do suplemento cearense, O POVO registrou referências n’O Globo, do Rio, em maio de 1929, e no Diário da Tarde, de Curitiba, em julho. Não me lembro de outras, mas já é muito para um suplemento que teve apenas dois números.

FM: Segundo Alfredo Bosi, o Simbolismo no Brasil viu-se obrigado a conviver com um “longo período realista que o viu nascer e lhe sobreviveu”, observando que se o mesmo tivesse conseguido “romper a crosta da literatura oficial” […] “outro e mais precoce teria sido o nosso Modernismo, cujas tendências para o primitivo e o inconsciente se orientaram numa linha próxima das ramificações irracionalistas do Simbolismo europeu”. Por outro lado, destaca Vera Lins que as tendências atribuídas ao Simbolismo europeu por Bosi eram também características do Simbolismo brasileiro. O mesmo se poderia dizer do Simbolismo no Ceará? Acaso teriam sido essas tendências “para o primitivo e o inconsciente” que dificultaram uma ação maior do Simbolismo no âmbito da literatura brasileira? Enlaço aqui com uma afirmação de Franklin de Oliveira de que “o parnasianismo só obteve anacrônica permanência no Brasil porque, entre nós, em sua época, os simbolistas não alcançaram a audiência que lhes era devida”.

SA: Não me parece que o Simbolismo brasileiro haja tido as mesmas características do europeu; o nosso foi bem mais superficial. Qual o poeta nosso que, além de Kilkerry (e nem sempre), ostentou um hermetismo que lembrasse Mallarmé? No que toca à versificação, Andrade Muricy observou com razão que ele não inovou: “Os sonetos de Cruz e Sousa mantêm a estrutura métrica parnasiana”. Por sinal, num estudo publicado na Revista de Cultura Vozes em 1977, ao falar de desarticulações rítmicas e fugas aos padrões métricos, apontei casos em Emiliano Pernetta, Alphonsus de Guimaraens, Silveira Neto, Lívio Barreto e outros, mas notei que Cruz e Sousa e o próprio Kilkerry (inovador na mensagem) seguiam rigorosamente a versificação clássica. No Ceará, há “irregularidades” métricas em Lopes Filho e em Lívio Barreto, mas seu Simbolismo é ainda menos radical, porque bebido principalmente em Antônio Nobre, a influência maior. Com relação à “anacrônica permanência” do Parnasianismo no Brasil, temos um problema de aritmética: como foi dito na resposta anterior, Os troféus, de Heredia, são de 1893, e as Poesias, de Bilac, de 1888, anteriores portanto. O certo é que, como lembra Afrânio Coutinho, os movimentos literários se imbricam; é falsa a noção de que, na França, iniciado o Simbolismo, o Parnasianismo morreu. O livro precursor do Simbolismo na França todos sabem que é As flores do mal, de Baudelaire, de 1857; se tomarmos o ano dos Esmaltes e camafeus (1852), de Theóphile Gautier, como marco precursor ou mesmo iniciador do Parnasianismo, dele para o livro de Heredia (que não marca o fim da corrente), teremos 41 anos. No Brasil, de 1878, ano da estreia de Alberto de Oliveira, para 1922 (ano da Semana de Arte Moderna), temos 44 anos. Em suma: o anacronismo não nos parece tão chocante à luz da aritmética.

FM: Tanto Amadeu Amaral quanto Franklin de Oliveira sustentam a carência de base filosófica em nosso Modernismo, afirmando este último que o mesmo limitou-se tão-somente a “romper com o passado”, em nada fundamentando essa ruptura. Como situar esta observação dentro do panorama do Modernismo ocorrido no Ceará?

SA: O Modernismo do Ceará é fruto do movimento nascido em São Paulo, e o que se disser de um vale para o outro. O que se queria mesmo era fazer algo de diferente. Basta lembrar que, como observo no meu livro a que você se refere, os modernistas daqui estavam em estreita aliança com os rapazes da “Antropofagia”, mas apesar disse se diziam pertencentes ao “verde e amarelo”, quando, em São Paulo, “antropófagos” e “verde-amarelistas” andavam às turras…

FM: Também pediria uma avaliação sua acerca da revista Clã, que me parece um dos marcos fundamentais da literatura brasileira, inclusive pela dilatada extensão desta aventura. É possível traçarmos uma analogia de seu conteúdo editorial com o de outras publicações da época, a exemplo da paranaense Joaquim e da carioca Orfeu?

SA: Não tenho toda a coleção da revista Clã, que teve trinta números (o último é o 29, mas houve um número zero antes do número 1), mas, com base nos números que possuo e nas obras de vários do grupo escrevi um capítulo de mais de 70 páginas sobre o grupo Clã em meu livro Literatura cearense (1976). E, como tenho repetido exaustivamente, considero o Clã responsável pela implantação definitiva do Modernismo no Ceará nos anos 40. Se Antonio Girão Barroso ostenta traços do primeiro Modernismo ao lado de poemas concretos e Aluízio Medeiros tem notas surrealistas e chega quase ao poema “Práxis”, Artur Eduardo Benevides, a princípio schmidtiano, tem a maior parte de sua poesia na dicção da Geração de 45. Conheço inúmeros periódicos do Modernismo brasileiro, mas não as que você cita.

FM: Confesso aqui que também eu não conheci a publicação paranaense. Se a ela fiz referência é porque a encontrei citada por Gilberto Mendonça Teles, em seu Vanguarda européia e Modernismo brasileiro (12ª edição, 1994), que curiosamente não faz menção à revista Clã. Quanto à carioca Orfeu, foi fundada em 1947, por Fernando Ferreira de Loanda, Fred Pinheiro, Ledo Ivo e Bernardo Gersen – tendo abrigado amplamente os nomes vinculados à Geração de 45. Seguindo em nossa conversa, observo tanto quanto nos momentos iniciais da poesia de João Cabral e Ledo Ivo, é possível identificar uma forte influência do Surrealismo na obra de Francisco Carvalho e José Alcides Pinto. Em grande parte, graças à hegemonia do Concretismo – “o prestígio e a influência patroladora dos [irmãos] Campos”, segundo Gilberto Mendonça Teles –, não circulou entre nós o Surrealismo com a mesma força com que ocorreu em outros centros latino-americanos. Dentro da literatura cearense é possível identificar outras circunstâncias – penso em sua referência ao Aluízio Medeiros – que possam ser vinculadas ao legado surrealista?

SA: No Ceará, que eu lembre, além dos três poetas citados (Aluízio Medeiros, Francisco Carvalho e José Alcides Pinto), há momentos que me parecem surrealistas em Artur Eduardo Benevides quando diz, por exemplo, que a solidão, “fêmea marinha”, é “grande gato amarelo comendo mil guitarras”. Talvez em Iranildo Sampaio também. E nem preciso falar de você mesmo, uma vez que Assis Brasil, n’A poesia cearense no século XX, fala explicitamente de sua “adesão ao Surrealismo”.

FM: Seu nome encontra-se diretamente vinculado ao estudo crítico da literatura cearense. Neste sentido, são de extrema importância, além daqueles que aqui já citamos, livros como Dez ensaios de literatura cearense (1985) e Novos ensaios de literatura cearense (1992), onde encontramos avaliações relevantes da obra de Rachel de Queiroz, Moreira Campos, José Alcides Pinto, Milton Dias e Francisco Carvalho. São também de importância fundamental algumas edições de autores cearenses organizadas por você, como é o caso recente de Poesia completa, de Aluízio Medeiros (1996). Contudo, limitando o raio de ação de sua visão crítica ao âmbito da literatura cearense, não acredita correr o risco da repetição ou – o que seria ainda pior – do afrouxamento desta visão crítica, desgastando-a na avaliação de obras de menor importância?

SA: Você mencionou apenas escritores contemporâneos (aos quais eu acrescentaria Otacílio Colares, Artur Eduardo Benevides, Linhares Filho, Luciano Maia e Nilto Maciel, sem falar em Jáder de Carvalho e Edigar de Alencar, todos estudados nesses livros), mas faço questão de acentuar que, embora contemple volta e meia a obra de autores atuais, a minha preocupação maior é com os escritores do passado, notadamente os pouco estudados. Na verdade, meu objetivo tem sido uma revisão da nossa história literária. Mas, apesar de considerar praticamente encerrado esse trabalho (meu próximo livro, a ser publicado brevemente, é Para uma teoria do verso; além disso, estou escrevendo uma biografia de Adolfo Caminha e há anos trabalho num livro sobre o Parnasianismo brasileiro, tão pouco compreendido hoje quanto o Simbolismo antes do trabalho de Muricy), penso haver dado minha contribuição ao estudo da Literatura Cearense e me satisfaz o fato de haver revelado textos desconhecidos de Joaquim de Sousa (notável poeta romântico), Paula Barros, Américo Facó e outros. Mesmo havendo publicado alguma coisa em São Paulo, no Rio de Janeiro e até em Portugal, contento-me em ser um escritor estadual, ou mesmo municipal…

FM: Ao referir-me tão-somente aos nomes arrolados na pergunta anterior, não o fiz estabelecendo nenhum critério de valor – embora confesse minha preferência por eles, e nunca pelos que você menciona a título de complemento de minha lista, excetuando parcialmente a poesia de Edigar de Alencar e a prosa de Nilto Maciel –, mas sim evitando cair num acúmulo exaustivo de nomes. Mas voltando a seu interesse maior, o de resgate histórico de obras fundamentais perdidas no tempo, caídas em esquecimento, recordo que Adolfo Caminha, em suas Cartas literárias (1895), escrevia: “Nada de Simbolismo: Verlaine está proibido na imprensa nacional. Um poeta de talento não pode escrever versos errados e papa Verlaine (ó manes de Castilho!) ‘erra’ desgraçadamente.” Está claro que mostrava sua simpatia em relação ao Simbolismo, ao mesmo tempo em que disparava contra o triunfo da mediocridade. O que nos traria hoje, no sentido de uma iluminação de nossa cultura literária, uma biografia de Adolfo Caminha?

SA: Nem sempre, nas Cartas literárias, Adolfo Caminha demonstra simpatia pelos simbolistas, chegando mesmo a desejar que Artur Azevedo escreva uma obra nova, que “fosse um exemplo, uma lição para essa mocidade que anda se iludindo com os simbolismos de uma arte falsa e pobre, rebuscada em Verlaine” (p. 197). Quanto à ideia de fazer uma biografia do autor de A normalista, é o caso de eu perguntar por que uma biografia de Zola, ou de João do Rio, ou de Assis Chateaubriand, ou de Garrincha, ou ainda de Noel Rosa ou de Orestes Barbosa. Creio que qualquer pessoa que atinja a fama, seja na literatura, no jornalismo, no esporte ou na música popular desperta o interesse do leitor para sua vida. Só no campo da literatura brasileira, há várias biografias de Fagundes Varela, de Castro Alves, de José de Alencar, de Machado de Assis e de Olavo Bilac. Penso que Adolfo Caminha, que tem tido pelo menos dois romances reeditados ao longo dos tempos (A normalista e Bom-crioulo), e cuja vida, apesar de relativamente breve, tem lances algo dramáticos, está merecendo a homenagem de uma biografia, naturalmente com alguns comentários a respeito de sua obra.

FM: Você disse que o Parnasianismo brasileiro é “tão pouco compreendido hoje quanto o Simbolismo antes do trabalho de Muricy”. Esta má compreensão teria a ver com uma opulência vocabular sacrificando a própria expressão das ideias, característica bastante peculiar ao Parnasianismo, chegando mesmo ao que Franklin de Oliveira denomina de “promiscuidade retórica”? Ou acaso seria outra a razão de sua errônea avaliação histórica?

SA: Na verdade, há vários tipos de incompreensão. O Parnasianismo desempenhou um papel de certa forma antipático: estética dominante, como que abafou o aparecimento do Simbolismo que, mesmo dispondo de revistas, não conseguiu impor-se. Mas aqui entra a primeira incompreensão: o fato de os simbolistas não haverem atingido o público (enquanto Bilac era lido e até decorado) prova que o Parnasianismo não foi aquela corrente impassível que nem na França conseguiu ser sempre. Por outro lado, a culpa disso não cabe aos parnasianos, mas aos próprios simbolistas que, com seu vocabulário cheio de arcaísmos e neologismos, fecharam-se na famosa “torre de marfim”. Outra incompreensão é a afirmação de que os chamados parnasianos, porque atingiram o grande público, eram superficiais, pois como lembrou Alceu Amoroso Lima, Bilac reuniu, “em torno de sua musa, um entusiasmo, ao mesmo tempo culto e popular, só comparável, antes dele, ao de Gonçalves Dias e de Castro Alves e, depois dele, a ninguém mais”. Outra incompreensão diz respeito a Alberto de Oliveira: Sílvio Romero disse uma vez que ele era “o parnasiano em regra, extremado, completo, radical”, e isso, que vale apenas para uma parte de sua volumosa obra, é repetido até hoje, ainda agravado com a mania que os autores de livros didáticos têm de reproduzir o famigerado “Vaso grego”, em que os hipérbatos me parecem mais barrocos do que parnasianos. Leia “Alma em flor”, poema composto de vários poemas menores, de versos trabalhados mas de emoção puramente romântica, e se verá que não é correta a generalização. Isto eu demonstro em Apolo versus Dionisos (1978), opúsculo de pouca repercussão, apesar de ter merecido um comentário de Domingos Carvalho da Silva na Revista de poesia e crítica, de Brasília. Diz-se que Alberto é só forma, sem lembrar, por exemplo, “O pior dos males”: enquanto Vicente de Carvalho dizia que “só a leve esperança, em toda a vida, / disfarça a pena de viver, mais nada”, Alberto de Oliveira diz: “Ela é o pior dos males que há no mundo, / pois dentre os males é o que mais engana”. Já se falou também na falta de originalidade do poeta, e eu lembro o soneto “Ironia”, em que o poeta, ao falar de um vidro quebrado, diz que ele “parece estar-se a rir de estar ferido”. Quanto a Raimundo Correia, outro grande poeta (que forma, com Bilac e Alberto, a famosa “trindade” da corrente), foi considerado plagiário (por causa do “Mal secreto”, bebido em Metastásio e de “As pombas”, inspiradas em Gautier), mas tem sido poupado, talvez pelo fato de Manuel Bandeira, secundando João Ribeiro, o considerar o maior dos três, opinião não seguida por Ivan Junqueira que, a meu ver, incorre em falha no julgamento que faz de Alberto de Oliveira. A verdade é que de qualquer corrente estética (sem exceção) não é difícil sair catando momentos mais infelizes para fundamentar argumentos equivocados.

FM: Você tem uma teoria do verso a ser brevemente publicada. Até que ponto ela contempla as diferenças entre prosa e poesia? Que lugar encontra em sua teoria o poema em prosa, largamente cultivado pela modernidade?

SA: A proposta do livro se encontra no próprio título: Para uma teoria do verso. Assim, limito-me a falar exclusivamente do verso, que já é um campo bastante vasto, deixando a prosa para quem queira estudá-la. No que toca ao poema em prosa, tão praticado a partir de Baudelaire, por mais poético que seja será sempre prosa, fora, portanto, de minhas cogitações nesse livro. Gostaria de acrescentar que ainda aqui não me afasto da visão histórica, pois estudo os versos dentro das correntes estéticas, ou estilos de época, razão por que jamais uso a expressão versificação tradicional, tão comum em trabalhos dessa natureza. É que, segundo demonstrou Péricles Eugênio da Silva Ramos, a metrificação de nossos românticos (e dos poetas anteriores) era a espanhola, em que se contava uma sílaba além da tônica final, o que, nos versos compostos, dava resultados que os parnasianos não entendiam e por isso consideravam simplesmente erro, o que, diga-se de passagem, tem tido repercussões até hoje. Faço questão também de desfazer o equívoco de que foi Mário Pederneiras quem primeiro fez verso livre no Brasil, quando o que ele usava era a polimetria.


*Floriano Martins (Ceará, 1957) é poeta, editor, ensaísta e tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br) e colabora semanalmente com o DC Ilustrado (Diário de Cuiabá) com uma série de entrevistas que futuramente reunirá em livro intitulado Invenção do Brasil. Contato: arcflorianomartins@gmail.com.

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