sábado, 29 de setembro de 2012

Entrevista de Raymundo Netto para o sítio multicultural "Letras e Livros", de Vladimir Araújo



Clique na imagem para ampliar! (fonte: O POVO)

LetraseLivros: “Abandonai toda a esperança vós que entrais”. A frase é de Dante Alighieri e antecedia a porta do Inferno na Divina Comédia. Está na primeira página de seu livro. É algum tipo de aviso ao leitor?

Raymundo Netto: Sim. Talvez seja isso mesmo. O processo de criação e composição dos textos que ora tomam corpo de Os Acangapebas exigiu, durante tempos e relativa distância — passei anos deixando-os encostados, inúteis, sedimentando —, muito de mim. Não só no que diz respeito ao trabalho estético e de escolha da linguagem, da forma, mas da ambiência, do conteúdo e da temática, digamos, “sugerida”. Muito do que está no livro, e até do que não se lê por meio das palavras, mas que, creio, o leitor mais perspicaz poderá traduzir ou reinventar, angustia-me profundamente. Lendo-o, nos momentos finais antes de sua impressão, e após descartar alguns dos contos antes elencados, senti-me envolvido como num abraço com o meu “inferno pessoal”, que pode ser o de qualquer um. Não sei ainda como os leitores se sentirão, talvez não o percebam dessa forma, porque, afinal, somos todos muito diferentes em nossas percepções, mas perpassa, exatamente no quesito “ambiência”, um certo ar comum de desesperança, ou de ridículo, no que chamamos de humanidade. 

LetraseLivros: Você demorou quase sete anos entre Um Conto no Passado: cadeiras na calçada e o novo livro. A que se deve esse hiato? Inspiração, observação ou processo de amadurecimento como escritor?

Raymundo Netto: Durante esse “hiato”, publiquei três livros infantojuvenis pelas Edições Demócrito Rocha e um livro, Cronologia Comentada de Juvenal Galeno, que integrou a coleção de sua Obra Completa, pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (entre 2010 e 2012, coordenei e organizei, enquanto integrante da Secult, cerca de 80 títulos). Escrevo crônicas há cinco anos (desde 2007), quinzenalmente, para o caderno Vida & Arte de O POVO. Os contos que compõem Os Acangapebas foram escritos entre o início de 2006 até o momento de sua publicação em 2012. Na realidade, alguns deles já existiam em rascunho, antes mesmo de eu escrever Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, como o conto homônimo que encerra o livro e outro que optei por retirar quando encerrei o livro. De fato, não tenho pressa nem preocupação com o “publicar”, mas com o “produzir”. A publicação, penso, é coisa muito séria, que, algumas vezes, transcende a própria vida do autor, daí, temos que burilar ao máximo, tomar o cuidado de garantir que tal texto esteja o mais próximo possível de nossa (ir)realidade, de nossa “assinatura pessoal”.  

LetraseLivros: Os Acangapebas, como você mesmo explica no livro, quer dizer “os cabeças-chata”, alcunha pela qual são conhecidos os cearenses. No entanto, em todos os contos o que se nota é uma abordagem um tanto quanto ampla e às vezes irônica dos sentimentos e psique humanas. São angústias, medos, solidão, depressão, temas que conferem às histórias um caráter universal. Por que o título então?

Raymundo Netto: Pois é. Quando comecei a escrever as histórias que pretendia enfeixar em livro, tinha a pretensão de que seus personagens pudessem ser (ou não) figuras “cearenses” (o homem das rodas de calçada, o palhaço mambembe, o bodegueiro, a doméstica, o retirante, etc.), e que fosse possível nesses textos o leitor encontrar o colorido de nossa voz e imaginário, algo meio pictórico, digamos assim. Havia acabado de lançar o Cadeiras... e estava muito acesa em mim a questão cultural, patrimonial etc. Alguns dos textos da época perduraram na seleção final, outros tantos saíram, vitimados pela proposta atual. Em alguns dos mantidos, o vocabulário mais “cearês” foi suprimido, por achar, hoje, obsoleto ao texto, justificado porque o fator linguagem cresceu na proposta de construção do projeto (enquanto) literário, embora se perceba que “ele” ainda está lá, distribuído de uma forma diferente, como pendurado nas “paredes” dos contos. O texto “Os Acangapebas”, por exemplo, entrou no livro por um “estalo” da amiga Tércia Montenegro, uma das leitoras dos originais (Pedro Salgueiro e o Nilto Maciel também o leram nesse período de pré-impressão). Ele não ia entrar. Achava o texto difícil, duro de engolir, mesmo entendendo que ele refletia a ideia original da obra, mas que sairia noutra edição. Seria estranho “Os Acangapebas” sair num livro de contos que não fosse Os Acangapebas, pensei, e exatamente por ser estranho achei ótimo. Por fim, foi recolocado.

LetraseLivros: Em uma de suas entrevistas você diz que a principal matéria-prima de seus contos vem das observações do outro, da cidade, do cotidiano. Há, no entanto, algum resquício autobiográfico em quaisquer das histórias de Os Acangapebas?

Raymundo Netto: Sempre há. Difícil não utilizarmos a nossa vivência pessoal (vivida, ouvida, sentida...), de alguma forma, naquilo que escrevemos. A nossa vida, a nossa experiência própria, assim como nosso gosto, nossa voz, acabam por conduzir o processo todo, mesmo quando a nossa “vida aparente” não esteja ali. Entretanto, me vigio para não ser muito “eu mesmo” nesses momentos, atitude diferente de quando escrevo crônicas.

LetraseLivros: Em seu conto “ Domingo” você fala de uma mulher que envenena a família após anos de uma submissão velada. Lembrei da primeira frase de Anna Karenina, do Tolstói, em que ele diz que  “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira." E também do Belchior na letra de “Hora do Almoço”. Essa “melancolia familiar” é inerente ao ser humano ou um retrato da sociedade atual?

Raymundo Netto: Olha, no caso, a mulher que mata a família (essa, a minha) é a empregada lá de casa (risos). Ela existe e tudo ali é verdadeiro: o almoço de domingo na casa de meus pais. Claro, até hoje não nos envenenou, ainda, mas poderia fazê-lo facilmente, e, por isso, parei de comer a macarronada que ela faz, a “receita da vovó Zena”, tradição dos domingos de tempos.

LetraseLivros: Há pouco mais de vinte anos um autor de qualquer tipo de produção literária só dispunha de livros ou revistas para publicar seus escritos. A internet mudou radicalmente essa realidade. Hoje se escreve e se torna público o que se quer e a qualquer hora em sites, blogs e até em redes sociais. Estamos diante da “Biblioteca de Babel” preconizada por Jorge Luis Borges? Publicar demais faz bem à literatura?

Raymundo Netto: Penso que a democratização de acesso, as possibilidades de divulgação e publicação, ou mesmo a aproximação e a facilitação da troca de contatos entre autores, críticos, editores e leitores de forma geral, em qualquer ponto do país ou fora dele, proporcionadas com o surgimento da internet, das redes sociais e com o avanço tecnológico são ganhos indiscutíveis. Por outro lado, me preocupa sempre a publicação sem a autocrítica, sem critérios básicos e o mínimo de questionamento sobre a qualidade daquilo que vai empurrar no mundo. Justamente devido à facilidade e o pouco comprometimento com o que se estabelece nesses meios, a pessoa escreve e em poucos minutos “publica”. Aliás, conheço diversos escritores que se pabulam de nem ler o que escrevem ou de não se preocuparem com essas coisinhas “desimportantes”, como, por exemplo, “revisão” (risos). Assim, infelizmente, são vários. Esse fenômeno de “cibersucata literária”, uma montanha de coisas nunca de se merecer lidas e que empatam a visão de outras melhores ofuscadas nesse universo de “em formação” sem fim, acaba por banalizar o que chamamos de literatura. Afirmo sempre que há uma distância brutal em ser alfabetizado e ser escritor (de literatura).

LetraseLivros: Clarice Lispector uma vez disse o seguinte:  “Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.” O que o leitor deve buscar nas entrelinhas de seus contos?

Raymundo Netto: O eco de si próprio. A sua verdade, a sua mentira, o conflito entre ambos, o seu reconhecimento ou o do outro, a sua tessitura enquanto gente, ou mesmo que não busque nada, deixando-se apenas levar e descobrir aonde as ondas ou os ventos se encontram.

LetraseLivros: Você é atualmente editor adjunto das Edições Demócrito Rocha, assina uma coluna quinzenal no jornal O Povo, mantém o blog Almanacultura. Em meio a tantas atividades, quais os seus projetos para o futuro?

Raymundo Netto: Tenho vários e em diversos segmentos diferentes de uma mesma literatura. Penso que a maior parte deles continuará apenas como projetos, a não ser que eu mude radicalmente de modus operandi, o que já venho tentando aqui e ali, sem sucesso. O meu maior projeto hoje é não prometer mais nada e dizer mais “nãos”.

LetraseLivros: Em sua maioria, Os Acangapebas é composto de textos curtos,  de, no máximo duas ou três páginas. Ainda assim, percebe-se algo de denso. Em “Saudades”, por exemplo, lê-se: “A vida na Terra parece não ter sentido sem a morte. A vida, eterno exercício de ter e perder; uma partida constante; uma dor interminável de não ter fim.”  Na sua visão, Acangapebas é um livro de fácil leitura?

Raymundo Netto: Ao contrário, acho que é difícil leitura, pelo menos para os melhores leitores (risos). Por vários aspectos: primeiro, porque não o escrevi pensando em um texto exatamente fluente, o que se percebe nos vocábulos, por vezes, elencados, pela presença de neologismos, ou mesmo de arcaísmos, pela construção frasal (frases nem sempre curtas), presença de “sintaxes arrevesadas” (como disse uma vez a amiga Inês Cardoso), muitas virgulações, enfim, não tomei nenhum cuidado nem usei das fórmulas convencionais de fazer “escorregar” na leitura. Por outro lado, apostei, sim, no que diz respeito à sonoridade (ou musicalidade), à combinação do ambiente “cênico” com as palavras (e na verdade que elas encerram), ao uso de linguagem cinematográfica e imagética, aos tipos “desenhados” e às “lacunas desejadas” do texto (espécie de “pedras no vazio” para os leitores “toparem” neles). Coisas assim...

LetraseLivros: Goethe dizia que escrever era um “ ócio muito trabalhoso”. E é com uma citação dele, “Mais Luz”, que você termina o livro. O muitas vezes árduo ato de criar ilumina mais a quem lê ou a quem escreve? 

Raymundo Netto: Não sei se ilumina. Antes, uma consequência de certa iluminância. Para nós que escrevemos é sempre um privilégio ver uma obra publicada e, principalmente, lida. Alguém discorrer sobre seu trabalho é muito prazeroso, desde que sincero. Há um escambo de elogios muito grande no meio literário (aproveitando-se da necessidade de um inútil reconhecimento intelectual por parte dos mais abastados), além de uma cegueira para aquilo que não é cânone nem estabelecido. Por isso, decidi não colocar orelha nem prefácio em Os Acangapebas. Queria que as “críticas” viessem espontaneamente, sem muletas, sem bússolas. Como disse, tudo para mim no que se refere a este livro, foi-me e é muito difícil. O que é bom.
Quanto a Goethe, ele é autor do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, marco do romantismo alemão, onde o protagonista, louco de uma paixão impossível por Charlotte — talvez nem tanto — se questiona: “Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo também a fonte de suas desgraças?” É uma história forte e pessimista, e que, na época, fez muito sucesso. Contam que a sua leitura, naqueles tempos, foi responsável pelo suicídio de diversos jovens na Europa. “Mais Luz” seriam as derradeiras palavras do autor em seu leito de morte. Para Os Acangapebas, a saída da escuridão de meu inferno. Há luz, sim, em algum lugar.

LetraseLivros: Onde o leitor poderá encontrar Os Acangapebas? Em que pontos comerciais da cidade?

Raymundo Netto: Farei um segundo lançamento do livro no projeto “Bazar das Letras do SESC”, no Teatro Emiliano de Queiroz, dia 28 de agosto, às 19horas, num bate-papo com o contista Carlos Vazconcelos. Especialmente, neste dia, o livro será vendido mais barato, a R$ 15,00 (quinze reais), compromisso que firmamos com o Projeto. Depois, poderá ser encontrado nas livrarias: Smile, Lua Nova, Arte e Ciência e Museu do Ceará. Também pode ser adquirido pela internet, pelo loja virtual da Editora PREMIUS. Costumo enviar pelos correios, após depósito bancário, caso as pessoas queiram adquirir e não o consigam pelos meios comuns.

Raymundo Netto é escritor e editor. Autor de Um Conto no Passado: cadeiras na calçada (romance, 2005), Os Acangapebas (contos, 2012), Cronologia Comentada de Juvenal Galeno (ensaio, 2010), e dos infantojuvenis A Bola da Vez (2007), A Casa de Todos e de Ninguém (2009) e Os Tributos e a Cidade (2010). É cronista do Caderno Vida & Arte do jornal O POVO desde 2007 e mantém o blogue AlmanaCULTURA (http://raymundo-netto.blogspot.com.br)

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