segunda-feira, 17 de março de 2014

"Cemitério de Ilusões", crônica de Raymundo Netto para O POVO (15.3)


A chuva escorria na janela, distorcendo a rua e os passantes. Um sol tímido anunciava chegar mais tarde, mas sem pressa e sem pompa, num espreguiçar-se luzidio por detrás das olheiras acinzentadas das nuvens plangentes. Homens, mulheres e crianças cruzavam aquela janela sem notar-lhe a beleza da pintura em cores arqueadas de luminoso beijo.
Nas calçadas, o lodo impunha a todos o despertar do pulo contido no vagar de suas vidas tediosas.
Os carros apenas se permitiam uns entre outros, sem acenos bondosos, nem ternuras antigas, engolfados na polifônica rouquidão incômoda e na certeza de um tempo a não se perder de todos os dias.
Um raio de sol atravessou a rua, levantando as saias dos varais, num estro inquietante de vida, e não percebeu que o menino desocupado, à espera do futuro, roubou-lhe uma nesga de cauda a escondendo em seus olhos e sonhos.
A menina, torcendo a roupa de qualquer um, cantava umbigada no tanque do quintal. Sua voz vaporava na esquina e repousava nos ouvidos dos mendicantes a adocicar com ela o olhar desesperançoso e alquebrado.
Os ventos denunciavam os gracejos de vidas sem jeito, expiadas pela bicoradas em garrafas num bar de copo sujo da esquina.
Na igreja, fiéis saíam a torcer as contas dos terços, caminhando em passos ligeiros em busca da absolvição de pecados inconfessáveis, do alívio daquela angústia suspeita de suas almas e de novas vítimas para a sua inquisição.
No píncaro da manhã, enquanto os passarinhos colhiam os poucos ramos e restos espalhados pelo chão, as prostitutas dormiam, exaustas do anonimato, do gozo clandestino, dos ouvidos emporcalhados de promessas dolosas de amor eterno.
Mais adiante, desperta o cemitério, único foro de verdade e coerência. Nas tumbas, nas covas, adormecem corpos frios, descarnes e exangues. Seus pensamentos sussurram com os ventos por entre flores nunca-vivas salpicadas de fezes de moscas. Aqui e ali alguém se lembra e ajoelha-se diante de um nome. Procura pelo seu rosto, guardado mais na última fotografia, amarrotada na bolsa, do que na memória. Ouve-se do lembramento a voz, a gargalhada alegre de um dia de domingo. Chega-se aos carinhos iniciais, às cartas mal escritas, às agruras compartilhadas numa violenta existência, e inveja o outro, o que não respira, o que não pode, aquele que não cruzará o portão. É quando lhe chegam as lágrimas, mas por si do que pelo já findo. Olha para o céu e ele também chora. As formigas correm, silenciosas, carregando nos ombros a sobrevivência, assim como ela ou como nós, por meio da lama.




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