domingo, 27 de abril de 2014

"O Jaguaribe", crônica de Ana Miranda para O POVO

Demócrito Rocha, autor do poema descrito por Ana Miranda

Uma das maiores poesias escritas no Ceará, para o Ceará, talvez a maior de todas, é  "O Rio Jaguaribe", de Demócrito Rocha. Reproduzo, para quem não a conhece:
“O rio Jaguaribe é uma artéria aberta / por onde escorre / e se perde / o sangue do Ceará. / O mar não se tinge de vermelho / porque o sangue do Ceará / é azul. // Todo plasma / toda essa hemoglobina / na sístole dos invernos / vai perder-se no mar. // Há milênios... desde que se rompeu a túnica / das rochas na explosão dos cataclismos / ou na erosão secular do calcário / do gnaisse do quartzo da sílica natural... / E a ruptura dos aneurismas dos açudes... / Quanto tempo perdido! // E o pobre doente – o Ceará – anemiado, / esquelético, pedinte e desnutrido – / a vasta rede capilar a queimar-se na soalheira – é o gigante com a artéria aberta / resistindo e morrendo / resistindo e morrendo / resistindo e morrendo / morrendo e resistindo... // (Foi a espada de um Deus que te feriu / a carótida / a ti – Fênix do Brasil.) // E o teu cérebro ainda pensa / e o teu coração ainda pulsa / e o teu pulmão ainda respira / e o teu braço ainda constrói / e o teu pé ainda emigra / e ainda povoa. // As células mirradas do Ceará / quando o céu lhe dá a injeção de soro / dos aguaceiros - / as células mirradas do Ceará / intumescem o protoplasma / (como os seus capulhos de algodão) / e nucleiam-se de verde / – é a cromatina dos roçados no sertão... // (Ah se ele alcançasse um coágulo de rocha!) // E o sangue a correr pela artéria do rio Jaguaribe... / o sangue a correr / mal que é chegado aos ventrículos das nascentes... / o sangue a correr e ninguém o estanca... // Homens da pátria – ouvi: / – Salvai o Ceará! // Quem é o presidente da República? / Depressa / uma pinça hemostática em Orós! // Homens – / o Ceará está morrendo, está / esvaindo-se em sangue... // Ninguém o escuta, ninguém o escuta / e o gigante dobra a cabeça sobre o peito / enorme, / e o gigante curva os joelhos no pó / da terra calcinada, / e / – nos últimos arrancos – vai / morrendo e resistindo / morrendo e resistindo / morrendo e resistindo”.
Há tantas coisas a se pensar, a partir desse poema... primeiro, a bela imagem de nosso estado como uma fênix, que sempre renasce das cinzas, a ave de fogo, com tanta força que é capaz de carregar elefantes; suas lágrimas curam qualquer doença ou ferida, e suas cinzas podem ressuscitar um morto. A fênix também é o sol, que morre todos os dias e renasce no horizonte. Essa ave simboliza os sentimentos de perpetuação, ressurreição, esperanças sem fim. Depois, a imagem da água como o nosso sangue, o que nos dá vida, e tão desperdiçada... Temos adversidades, mas quando chegam os recursos, eles se rompem e a força se vai, o tempo é malogrado. E ficamos frágeis, pedindo, esperando. Morrendo e resistindo. Mesmo assim, ainda conseguimos pensar, respirar, construir, emigrar, povoar terras. É a imagem de uma grande força que se perde, mas por quê? E o poema conclama os Poderes a salvar o Ceará, depois invoca os seres humanos, para não nos valermos apenas do que vem de fora. Como um médico e um paciente, ambos precisam operar a cura. Alguém há de vir nos salvar, mas não vem, e ficamos apenas morrendo e resistindo. Se temos força para resistir à morte, haveremos de ter para muito mais. Mesmo que ninguém nos escute.
O poema deixa perguntas no ar: o que significa nosso sangue ser da mesma cor do mar? O que o gigante com as veias abertas pode simbolizar? Quem está se beneficiando com as nossas riquezas? São mesmo perdidas? São mal divididas? Temos uma imagem esquálida de pedintes? Por quê? Como o sentimento fatalista deve ser encarado? Ele ainda existe em nossa terra? Por que dizemos, Deus quis assim, As coisas são como são... Vivemos sob a lei do menor esforço? O Ceará mudou, desde que foram escritos esses versos? Quem é responsável por nossa terra e destino? O que ocorre há milênios e ainda determina nossa sina? Podemos, nós mesmos, fazê-lo? O que o nosso passado nos diz? Nossa história? Por que os versos usam imagens da ciência? Qual a relação desse poema com a transposição das águas do São Francisco? Que deus é esse que cortou a veia de nosso coração? A veia que dá vida ao nosso rosto e ao nosso crânio? Afinal, quem somos nós, e o que queremos?

Cada um deve ter as suas respostas. Mas ainda há algo a pensar, e coisa das mais importantes: é que o Ceará tem toda uma celebração poética que deve ser exaltada, relembrada. Assim como esse, outros poemas não podem ser uma força desperdiçada.

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