sábado, 2 de maio de 2015

"Memória de Encantamento de Audifax Rios", tributo de Raymundo Netto para O POVO

Clique na imagem para ampliar!
Ilustrações de Audifax Rios

AUDIFAX RIOS era um príncipe... em pele de sapo! Assim, para reconhecê-lo era inevitável, acima de tudo e de tantos, amá-lo, condição única para o desencantar dos olhos viciados a se deslumbrarem com fachadas enganosas, caiadas de injustificada arrogância e empavonamento, ilusões pela conta bancária e por medalhas de araque que, solenes, apenas imitam e plagiam o ouro.
Tímido, virtuose da humildade, não se enganem: trazia no peito amoroso a convicção do seu trabalho, do talento e da originalidade. Empunhava o bastião da cultura “para que não desabasse por falta de quem por ele lutasse, pois olho grande é o que não falta”, e assim inventava De Um Tudo: pintava, desenhava, escrevia, pesquisava, publicava, cercava-se de amigos, admiradores e o escambau.
Contudo, costumava dizer que os artistas visuais da maroceânica Fortaleza não o reconheciam como tal e por isso preferia, por ora, escrever. Como assim não reconheciam? É “oito ou oitenta!”
Lembro-me de uma ocasião em que estava no lançamento de uma revista nossa – não perdia eventos dos amigos – e soube da presença da Ana Miranda. Acanhado, perguntou se eu poderia fotografá-lo com ela. Chamei a Ana e o apresentei. Ela imediatamente disse que era sua leitora e o nosso artista quase se desmanchou: “Deve ler uma vezinha ou outra...”, disse, disfarçando a face encarnada com sorriso da criança que nunca deixou de ser.
Tive a sorte de conhecer e aprender muitas coisas com o mestre combo-artista. Trabalhamos juntos em alguns projetos. Gostava de estar a seu lado, pois, além de ouvir cambalhóticas histórias da sua confidente e amante lourinha, sentia a segurança de falar, de rir, de ser eu mesmo, e de ele gostar disso! Audifax nada nos pedia, nem queria. Sua alma já estava de todo salpicada de riquezas invulgares.
Certo dia, um gaiato ao ler a crônica que escrevi em que Audifax era o protagonista, disse-lhe: “O Raymundo Netto falou mal de você no jornal!” Ele, por sua vez, com sua voz pachorrenta, tascou: “Cara, o Raymundo é meu amigo, pode falar mal de mim. Os inimigos é que eu não deixo!”
No mais a mais, recebia seus telefonemas ou o acolhia na recepção do O POVO. No meio da conversa, leitor dos cronistas da casa, lançava uma graçola no ar. Às vezes eu “voava”. Ele, percebendo, me chamava a atenção: “Cara, está na tua crônica dessa semana...” E ria-se. Daí, eu retornava falando sobre a sua, a das sextas, de palavreado sertanejo, meio moleque, narrativa gostosa e irônica, de riso, fé e dor, nas quais conseguia o milagre de trazer à vida e à humanidade personagens que se foram há tempos e que, para mim, até então, tinham ares de estátuas frias.
Em “Rio Acaraú: um filete de esperança”, última crônica publicada no jornal O POVO, Audifax profeticamente se despedia da Santana infantil de não tantas priscas eras, pisando na beira do rio, revendo amigos que se foram e o sol risonho que sempre pintou, caminhando por entre o rosário de serras, acenando com lenço branco as velhas promessas, as lapinhas licânicas e histórias como a de um Raimundo, outro que não eu, o canoeiro, vítima, imaginem, de um infarto fulminante. Um infarto. “Haja Nostradamus!”.
Ultimamente tenho escrito frequentes crônicas-obituários, o que entristece e me farta de vazio, exceto pela saudade daqueles que nos deixam no meio do caminho. Penso que o Audifax, trajando uma de suas berrantes camisas, pegou carona em um de seus peixes voadores cobertos de escamas coloridas, feito lantejoulas carnavalescas, entre nuvens miscelânicas, no meio de uma procissão de um conselheiro Antônio, sendo recebido pela luz e pela glória daqueles que ele nunca nos deixou esquecer.
Ah, como é ingrata a dona morte, que pegou na distração nosso amigo de coração mole de ribeirinho, silenciando a ceia larga do seu caprino clube, no qual enquanto fiel sentinela e guardião não nos deixava sair sem assinar o irreverente caderno de atas. Deixa para trás e para nós o lamento distribuído entre Deus e o mundo, ciente de que o Altíssimo dessa vez acertou e levou o melhor entre todos nós.

Dobram os sinos e o sineiro, e, como dizia AR: “depois do episódio maligno, tudo divino no quartel de Quirino”. Vai com Deus, querido Audi, e voe com a gente quando desmorrer!


Entronização no livro de atas do Clube do Bode, 
Galeria Caprina nº 225, 
abril de 2015, por Audifax Rios


Nenhum comentário:

Postar um comentário