terça-feira, 23 de junho de 2015

"Crônicas Absurdas de Segunda", por Carlos Carvalho


Geórgia Cavalcante, Raymundo Netto e Carlos Carvalho
(Clique na imagem para ampliar!)

As segundas-feiras costumam ser dias horríveis para muitas pessoas. Principalmente para aquelas que adorariam que os domingos fossem mais longos e que o fim da noite jamais chegasse. Entre essas pessoas talvez esteja a figura do cronista de jornal, aquele que deve estar com seu texto prontinho para que, já no café da manhã da segunda-feira, o leitor possa se deleitar com as notícias trazidas pelo jornal. É claro que me refiro aqui, especificamente, àqueles leitores que ainda não abandonaram de todo sua relação com o folhetim impresso, não desconsiderando que o mesmo ocorre com o leitor que lê o jornal em outro tipo de suporte. Esse, assim como eu, provavelmente lê o que lhe interessa já na noite anterior.
O leitor, certamente, não sabe das peripécias e malabarismos que o cronista às vezes precisa fazer para entregar seu texto, mesmo em tempos de Internet. E, convenhamos, o leitor não dá a mínima pra isso. O cronista que se vire, pois para o leitor, é o resultado final que realmente interessa. Mas o jornal. Ah! O jornal! Houve um tempo em que o jornal que trazia a crônica de hoje, estaria embrulhando peixe amanhã. Os tempos mudaram e, hoje, poucas são as pessoas que comeriam peixe embrulhado em jornal. Mas para onde vai o jornal que carrega aquela crônica que levou um bom tempo para ser escrita? Vai para os confins da rede e, provavelmente, para as nuvens. E, como se diz no interior, a nuvem é bem aí!
Como nem todo mundo acessa a web e nem sabe o que é essa tal de nuvem, é sempre bom registrar o que se escreve naquele negócio chamado livro. E é exatamente isso que fez o escritor Raymundo Netto ao publicar uma seleção das crônicas que, entre os anos de 2007 e 2010, escreveu para o jornal O POVO. Conforme o próprio autor: “A maior parte dessas crônicas se desenvolvem a partir de “encontros” com escritores e personalidades cearenses vivos ou mortos – em literatura isso não faz muita diferença –, em um exercício intertextual, contextualizados com acontecimentos na cidade de Fortaleza, palco que serve de frigideira para a maioria dessa omelete”.
A ideia de Raymundo Netto em escrever suas crônicas a partir de “encontros” com escritores e personalidades vivos ou mortos da cena fortalezense, faz com que o leitor, juntamente com o narrador, revisite a Fortaleza, essa cidade que tanto assombra quanto seduz. Essa mesma cidade quase engolida pelos milhares de buracos que invadem suas ruas, devido a incompetência de seus gestores e pelo seu povo entregue à própria sorte. A cidade vista pelos olhos (verdes?) de Raymundo Netto é a “prima pobre” da Paris vista pelos olhos miúdos de Woody Allen, em seu filme Meia-noite em Paris (2011). E aqui tomo a liberdade de apontar uma aproximação da obra de Netto com a de Allen, no que concerne a uma observável exaltação do passado em relação ao presente. Sobre a comédia romântica de Allen, observemos uma das sinopses disponibilizadas na Internet:
Gil (Owen Wilson) é um escritor e roteirista americano que vai com a noiva Inez e a família dela à Paris, cidade que idolatra. Ele realiza vários passeios noturnos e sozinho, quando descobre que, surpreendentemente, ao badalar da meia-noite, é transportado para a Paris de 1920, época e lugar que considera os melhores de todos. Nessas "viagens", Gil vai a várias festas onde conhece inúmeros intelectuais e artistas que admira e que frequentavam a cidade-luz naquela época. Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Salvador Dali dentre outros. Até que tenta acabar o seu romance com Inez, pois se apaixonou por Adriana (Marion Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado a confrontar a ilusão de que uma vida diferente (a "época de ouro" francesa) é melhor do que a atualidade.
O narrador de Raymundo Netto seria o nosso Gil, um flâneur a caminhar com atenção pelos mais inusitados espaços da cidade. Nas caminhadas, o narrador encontra e conversa com Rachel de Queiroz, Francisco Carvalho (Que poeta maravilhoso!), Ana Miranda e Mário Gomes; entre inúmeros outros. O resultado dessas conversas e andanças é o livro Crônicas absurdas de segunda (2015), uma vez que o referido cronista escrevia para o jornal exatamente às segundas. Trata-se de uma belíssima edição, publicada pelas Edições Demócrito Rocha, composta de trinta e nove crônicas, sendo três inéditas. Há três textos introdutórios, sendo “Crônicas absurdas”, de Ana Miranda, “Crônicas”, de Sânzio de Azevedo e “Duas palavras”, do próprio Raymundo Netto explicando a origem, a construção e os resultados do projeto que acabou por gerar a obra em questão. O livro traz ainda um “posfácio” escrito por Pedro salgueiro, denominado de “Um dândi pós-moderno”, além da biografia do autor, bem como as referências bibliográficas.
A lexia “absurda”, no título da obra de Raymundo Netto, acaba por nos remeter ao Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo (1941), de Albert Camus (1913-1960); bem como ao teatro do absurdo, de Samuel Beckett (1906-1989); especificamente sua peça Esperando Godot, de 1952. Embora sejam “absurdos” diferentes, as crônicas de Raymundo Netto acabam por dialogar entre si e com o outro, quando, de uma forma ou outra, discorrem sobre a própria condição humana, tal qual ocorre em Camus e Beckett. A série de crônicas que Netto aqui apresenta, afirma Ana Miranda, tem uma linha mestra, ou seja, é uma agenda de encontros com fantasmas. De repente o cronista se depara com algum autor de livros que ele mesmo leu, e não esqueceu. Os seus fantasmas literários tomam corpo e vida, conversam, zombam, tresvariam, surpreendem e nos fazem rir, mas às vezes de olhos marejados. Há algo mais humano, pergunto, e ao mesmo tempo mais absurdo?
Sobre o narrador de Crônicas absurdas de segunda (2015), Ana Miranda diz:
O narrador me faz lembrar um senhor de chapéu coco e fraque, muito elegante, cortês. Entusiasmado e fervoroso, vaga pelas ruas a olhar tudo e conversar com quem aparece ali. Gosta de conversa. Um narrador carregado de sentimentos, uma afetividade à flor da pele, e um pouquinho de malícia. Fala num tom de certo gracejo inocente, aproveitando todos os momentos para chistes e improvisos. É quase o mesmo narrador do primeiro livro de Netto, Um conto do passado: cadeiras na calçada, romance preciso e admirável, com jeito de crônica, no qual, enquanto se passa uma história de amor, a cidade vai se mostrando e se transformando.

O “se mostrar” e o “se transformar” da cidade, observados pela autora de Semíramis (2014), no romance de Raymundo Netto, também é facilmente identificável na sua crônica. Essa transformação que se dá com a cidade, também se dá com seus habitantes-personagens em uma espécie de simbiose. E assim também o é na relação da personagem de Owen Wilson com a Paris dos anos 20, no Meia-noite em Paris.
Revisitar Fortaleza é sempre um convite irrecusável. Mais uma vez, e com bastante esmero, o escritor Raymundo Netto nos lança o convite a partir das suas Crônicas absurdas de segunda (a nosso ver, crônicas de primeira), tomando ruas, abrindo portas e apresentando gente.
Que a cidade nos seja tão leve quanto uma crônica 'absurda', de Raymundo Netto!


(*) Carlos Carvalho é professor de Literatura e de Língua Inglesa na Uece/Feclesc, autor do livro de crônicas Memória de Peixe, ganhador do Prêmio de Literatura da Unifor (2009), e mantenedor do excelente blog que leva o seu nome.

(*) Crônicas Absurdas de Segunda, de Raymundo Netto, pode ser adquirido na livraria do Espaço O POVO de Cultura & Arte, mas também por meio da Livraria Virtual da FDR: livraria.fdr.com.br

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