quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

"A Carta", de Pedro Salgueiro para O POVO


— Vinte anos de saudades, amiga —.
Por que temos que guardar o segredo de uma história sempre para o final? — não seria melhor nos livrarmos logo dele; aí então o relato fluiria de maneira mais honesta e tranquila, sem o trunfo incômodo de um mistério apenas conhecido por nós!?

Sempre me impressionaram os que começam seus enredos desvendando esse enigma: tiram um peso das costas, desprezando assim toda a nossa ansiedade — jogam as armas fora, lançam-se de peito aberto ao leitor. Torna-se, então, mais difícil construir uma aventura abrindo mão deste trunfo?... Não temos nada além das palavras, a não ser a própria aventura, e o nosso pouco talento.

A verdade é que decidi dizer logo que Suely morreu — e morreu de morte besta, dessas que não se encontra justificativa senão no acaso, ou no destino, ou… Sabe-se lá o que rege o mundo. Terminou os estudos, casou, teve dificuldades financeiras, mudou-se junto com o marido para uma terra distante. Todo mês a cartinha certa aos pais, o papel embebido em lágrimas — a promessa constante de uma visita no fim do ano. Não fosse o implicante destino.

Uma festinha de aniversário, uma briga louca de bêbados na calçada, um tiro errado e uma bala na nuca; logo a dela. Sexta à noite. Telefone deixando recado para os pais. Arrodeios, depois a notícia triste. Providência dos amigos. Vaquinha para o avião. Embalsamado o corpo — hospitalizado o sogro. Domingo de noite o corpo chegando (a promessa finalmente cumprida), a cidadezinha inteira acordada, desmaios, sofrimento prolongado. Segunda-feira pela manhã o caixão na cova. As lágrimas finas sem serventia. O cansaço, a casa vazia, um silêncio fundo: essa mistura de frustração e revolta. Tarde dessa mesma segunda: a carta inesperada. O carteiro, também, incrédulo. Olhos nas janelas. O choro recomeçado, sem fim, a imagem do Coração de Jesus no abraço apertado da mãe.

Carta, sim! Remetida por Suely — a última, feliz, desta vez perfumada, prometendo a eterna visita no fim do ano, dizendo da gravidez —, que a pôs nos correios na sexta pela manhã. No final até consola a mãe da doença grave de uma vizinha: sofresse não, a vida era assim!

A carta, pois, remetida na sexta pela manhã: Recebida na segunda à tarde.

Antes dela, Suely.

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