sábado, 2 de janeiro de 2016

"Rua do Escritor, Número Tal", por Ana Miranda, para O POVO

Uma das coisas que eu amo em Fortaleza é a quantidade de ruas batizadas com nomes de escritores da prosa ou da poesia, nos meus percursos. São muitas. E ruas importantes.
Ao entrar na cidade, e a todo tempo, tomo a rua Padre Antônio Tomás, nome de um poeta que não quis publicar nenhum livro e ainda assim ficou na história literária; foi o primeiro Príncipe dos Poetas Cearenses e autor de sonetos puros, nítidos, como este:

Muito cedo senti que a poesia
tinha a sua apoteose no soneto.
Eram tempos saudosos em que lia
duas quadras gentis, mais dois tercetos.

Dentre as flores o soneto lembra a rosa,
dentre as joias luzentes, o diamante,
das mulheres, a musa mais formosa,
dos perfumes, o olor inebriante.

Tu, poeta, que buscas nesta hora,
doce pólen, a mítica ambrosia,
acharás no soneto, sem demora,

a pintura e moldura da magia,
o legado dos clássicos de outrora,
a beleza inconsútil da poesia.

O meu posto de gasolina favorito fica na avenida Rui Barbosa, e passo ali lembrando de nosso Águia de Haia, o sujeito mais inteligente deste país, que foi jurista, mas também escritor, filólogo e tradutor. E trafego na que leva o nome do Barão de Studart, o qual, mesmo tendo escrito excelentes livros de geografia, biografia, de medicina, era um brilhante historiador, que nos deixou centenas de textos valiosos sobre a história do Ceará.
Outra rua com nome de escritor é a Domingos Olímpio, da qual pego um trechinho quando vou ao jornal e, quando quebro a esquina, lembro do enigmático romance Luzia-Homem. Paula Ney, o boêmio e eloquente poeta, companheiro de Olavo Bilac, é rua transversal que me leva à casa de amigos, onde costumo ir. Raramente, mas já passei na rua Justiniano de Serpa, poeta da Abolição, nascido no Aquiraz e dono de uma obra poética condoreira, guindada, hiperbólica.
E sempre que saio da cidade passo pela avenida que homenageia Antônio Sales, um dos fundadores da Padaria Espiritual, e, claro, sinto vontade de rir nessa rua engarrafada. Apesar de poeta, Sales ficou mais conhecido por seu único romance, de título profundamente cearense: Aves de arribação. Relendo suas poesias, encontrei esta, que parece ter sido escrita hoje de manhã:

Este país vai todo em polvorosa!
A anarquia por toda parte impera,
a lei sucumbe inerme e dolorosa,
a tirania estúpida prospera.

Da traição medra a planta venenosa,
a semente dos ódios prolifera,
a dilapidação campeia e goza
das vacas gordas a ditosa era...

As eleições são conto de vigário,
couro e cabelo tira-nos o erário,
geme a lavoura, os bancos não têm fundos.

Mas – para consolar-nos deste inferno –
brevemente a mensagem do governo
dirá que estamos no melhor dos mundos.

Voltando do aeroporto para casa, percorro a avenida com o nome de Oliveira Paiva, autor do romance Dona Guidinha do Poço, leitura inesquecível de minha adolescência e que continua me fascinando. Tudo gente do século 19. Mesmo a rua onde moro já se chamou Professor Manoel Albano Amora – mudaram para o nome de um pescador, como ditam os sabores da política. Albano Amora é autor de Crônicas da Província do Ceará, e de livros de geografia sentimental, síntese histórica, e Direito. Passo às vezes na avenida Historiador Raimundo Girão, autor de mais de cinquenta títulos, de história, geografia, ou apontamentos genealógicos. E, pensando bem, nasci num bairro que tem o nome de um livro, o romance de Alencar, Iracema, obra-prima da literatura! De formas que, pelo menos simbolicamente, quando ando por Fortaleza, chego em casa como se tivesse passado o dia numa imensa biblioteca.
Não sei se uma cidade com um grande número de ruas com nomes de padres é uma cidade religiosa, assim como não sei se a nossa é uma cidade literária. Mas Fortaleza quis manter viva a memória de escritores, dando seus nomes a ruas. Parafraseando o mestre Câmara Cascudo, a alma da cidade está na sua toponímia.


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