segunda-feira, 21 de março de 2016

"O Mestre, Meus Erros, Nossos Livros", de Ana Miranda para O POVO

Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, por Carlus Campos

Vou contar por que às vezes gosto de errar: tenho um amigo que sempre me escreve quando cometo algum erro numa crônica; se passo um tempo sem errar, eu vou ficando com tantas saudades de suas mensagens que acabo cometendo mais um erro, para que ele me escreva. Ele cai nessa singela armadilha, como um patinho.
E quando ele me manda um elogio, para mim tem o valor multiplicado, pois este meu amigo é sempre austero em aprovações, já o ouvi a desancar livros considerados obras- primas. Ele é um verdadeiro intelectual, daqueles que já não se fazem mais por aqui nos dias de hoje, capaz de uma rara amplidão. “Sou como uma espécie de abelha que pousa por aí em qualquer flor e tenta extrair o material para produzir seu mel”, ele diz, sobre sua versatilidade. Além de sábio, é poeta.
Ouvi-lo é um encanto, para quem aprecia a inteligência. Como ele sabe muito sobre variados assuntos, envereda por laterais, faz voltas imensas, leva-nos por inesperados caminhos, ensina, questiona, informa, teoriza, filosofa, parece distante demais do ponto de partida, do tema central, mas, quando pensamos estar perdidos, subitamente seu pensamento volta à ponta da linha que estava desenvolvendo, e ele fecha a questão com alguma ideia inesperada.
Tão bom acompanhar essa mente em devaneios... Tantos compartimentos... A sensação é de que uma luz vai percorrendo a nossa cabeça, e vamos ficando também cultos como esse mestre, mas é só uma ilusão. A sua erudição é conta de uma vida inteira.
Sempre que o ouço, fico silenciosa, pensativa, sobre como é que uma pessoa chega a este ponto de guardar conhecimentos, e como é vasta a mente humana e como é infinita a nossa memória, capaz de reter tantas estrelas como se fosse um universo. É esta a impressão que ele nos passa, de que o ser humano é um universo infinito. De que não há limites para a mente humana.
Quando criança eu pensava que o conhecimento era nato, só com o tempo foi que percebi, vem dos livros – e dos mestres que o receberam dos livros. Confesso que amo perder-me na mente de outros seres, e quando não estou andando, estou lendo, não posso sentar e pensar, os outros pensam por mim. (Frase sem sentido.) O meu amigo pode ser visto como um livro que caminha e sorri. Ou se agasta. Vida entre livros. Não há limites para a mente humana (a repetição da frase terá sido um erro?) Vida através de livros. Uma erudição imensa, mas discreta, que pode ser muito engraçada e às vezes cruel, porque tais pessoas não podem enganar a si mesmas nem a outrem. Tudo isso, sem nenhuma utilidade aparente, a não ser tornar melhor o ser humano.
Outro dia eu o vi a escolher um livro, numa pilha de exemplares variados sobre uma mesa. Ele se curvava, reverente, até chegar bem perto de cada livro que averiguava, como se quisesse sentir o cheiro das páginas. Ou uma emanação de outra natureza. Ou entrar numa abóbada invisível que circundasse o volume. Ou como se estivesse a ouvir a voz do livro. A perguntar, e a ouvir respostas. Um diálogo silencioso, de gestos, de percepções. Suas mãos pareciam pássaros bem leves, luminosos, que quase não tocavam nos livros, quando retiravam algum da pilha. Quanta delicadeza! Seus olhos, como nascidos da deusa que confinou um fogo nas membranas e tecidos finos segurando uma água profunda que flui em torno mas deixam transparecer as chamas internas. Ele virava o livro, olhava por diante, por trás, a lombada, lia o que estivesse escrito na quarta capa. Às vezes um leve sorriso, às vezes uma leve desaprovação, uma recusa, um acolhimento. Abandonava o livro, mas com respeito.
Se ficava interessado, seus olhos se acendiam. E ele abria o livro para ler as orelhas. Folheava o miolo, lia aqui e ali, numa concentração absoluta, como se nada mais houvesse no mundo, só ele e o livro. Era possível ver em sua expressão um diálogo com o livro, a sucessão de memórias que ocorria a cada palavra lida, a profundeza dos atingimentos. A familiaridade no trato. O elemento delicadamente possuído. Uma beleza de instante inesquecível. Professor Diatahy Bezerra de Menezes. Aquele homem tão elegante em seu blazer marinho, sua camisa alva, a pureza de uma vida dedicada ao estudo, ao ensino, à casa com quintal, ao neto... Sabedoria. Flor que nasce do mel de uma flor que nasce do mel de outra flor...


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