sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Literatura Suicida: "Intermezzo”, de Raymundo Netto, em Os Acangapebas


VIVER! Ainda é a melhor escolha.
10 de setembro
Dia Mundial de Prevenção do Suicídio

lasciate ogni speranza, voi ch'entrate
(Dante Alighieri, A Divina Comédia)


(...)

Ela morreu. Ninguém mandou, mas mesmo assim, ela morreu.
Rompeu a lógica num absurdo e abmudo processo.
Caiu num abismo de incertezas e conflitos que, ninguém sabia, trazia entre os cabelos quase sempre desalinhados.
Ela morreu. Difícil crer no vazio de seu quarto.
É estranho poder, agora, ler as cartas recebidas; mexer nas caixas guardadas secretamente no armário; escolher suas roupas; separar o seu prato e o copo; distribuir seus livros, fotos e discos... Aliás, nada do que tanto amava levou consigo, nem a vida nem eu.
Ela morreu. Olhava por aquela janela todos os dias. Parada, encostava a cabeça, empunhava uma xícara de café e lançava o olhar — contornado pelo cansaço das noites indormidas — para adiante. Só o olhar, então, só o olhar.
Mas ela morreu; não, não morreu; sim, foi-se.
Nunca falou nada sobre isso. Por que não gritava, por que parecia que nada, absolutamente nada, lhe pesava tanto? Precisava? Precisava?
Não, ela falava sim, falava o tempo todo, quem quisesse poderia ver na sua inquietude, no silêncio, no toque das mãos, no suor, no olhar... Ela estava lá, o tempo inteiro, naquele olhar.
Ela morreu. A apoteose deu-se à calçada, sem flores nem jardim. O cinzento do céu combinava com o cimento da garagem. Tanto fazia o céu como o chão. Voar ou morrer.
Ela morreu.


Intermezzo, em Os Acangapebas, de Raymundo Netto (2012)






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