sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

"A Luneta Mágica", de Raymundo Netto


Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), médico, escritor, dramaturgo e jornalista carioca, famoso autor de A Moreninha, obra que em 1844 traçou a estreia do romance nacional brasileiro, escreveu em 1869 (século XIX) A Luneta Mágica, menos conhecida do que a primeira, mas cabendo aqui sobre ela uma boa “matutada”.
A obra tem como narrador e personagem central Simplício, que inicia: “Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome. Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio. Sou míope; pior do que isso, duplamente míope, física e moralmente.”
De fato, Simplício não enxergava a um palmo do nariz (miopia física), o que não permitia que visse imagens e aparências, ou seja, não teria condições de “julgar pelas aparências”. E, sabe-se lá, devido a isso ou à coisa nenhuma, também não conseguia associar ideias (miopia moral), o “Lé com o cré”, como dizem na boa e colorida linguagem do cotidiano, dando a impressão de ser um parvo, um bobo, não ter opinião sobre nada, absolutamente. Daí, seu maior sonho: poder ver as coisas como elas realmente eram – como se fosse isso possível...
Aparentemente – irônico isso – lhe bastaria um par de óculos. Como tinha recursos, não seria problema, mas já havia experimentado vários e nada. Foi quando lhe apresentaram um mago Armênio, residente na rua do Hospício, que se dizia com o poder de lhe oferecer uma luneta mágica –entendendo que a “luneta” a que se refere o livro é um monóculo – que deveria ser usada apenas durante três minutos, advertência do mago, pois a partir de então, seu possuidor passaria a ter a “visão do mal”, ou seja, ver o mal de todas as coisas e pessoas. E, com mais de 13 minutos, ele teria também o poder de enxergar o futuro e, então, a luneta se despedaçaria. Huuummm.
Foi quando Simplício, como é absolutamente humano e imperfeito, desobedece a ordem de não ultrapassar os três minutos e descobre então toda a maldade e rudeza de um mundo, despertando o seu espírito de sonolenta inocência.
Num segundo momento, recebe outra luneta, com os mesmos atributos, só que, ao invés de ter a “visão do mal”, tem a “visão do bem”, passando a ver apenas o lado bom de tudo e de todos.
Não irei oferecer aqui mais spoilers. Já basta. Que os interessados leiam Macedo, ele merece. Comecemos então a pensar nessa simplícica visão do bem e do mal.
Ora, Macedo, em um momento de seu livro, como costume, filosofa:
“A exageração degenera os sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a verdade. Exagerar é mentir. No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor. Mas o bem é o bem, o mal é o mal como eles são e não podem deixar de ser para a humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela. [...] homens absolutamente maus ou absolutamente bons não são possíveis, nem se compreendem. Estudar o mundo e os homens, observando-os pela enfezada lente do pessimismo é tão perigoso e falaz como estudá-los observando-os pelo imprudente prisma do otimismo.”
O povo também brasileiro, tão incipiente de leitura e de maquinário intelectual, sem opiniões ou julgamentos próprios – pelo menos os mais elaborados –, como Simplício, tão facilmente conduzido por aquilo que aparentemente se vê, ou pelo que as suas lunetas televisivas e/ou midiáticas apresentam num alardeado pessimismo ou otimismo, conforme interesses e objetivos de quem as dominam [refiro-me, prestem atenção, às lunetas], parece perdido, numa caravana de ódio e de desespero, precipitado como os bárbaros nos tempos mais remotos, movido por instinto de sobrevivência, raivoso e aguerrido numa batalha gratuita em campo aberto – porém com protetor solar de farmácia –, numa disseminação de inverdades, tomado pelo show pirotécnico do grande coliseu judiciário, embasbacado com o espetáculo da corrupção, como se, pela primeira vez, lhe fosse desvendada a maldade humana. Haja Cabral... Quanta inocência.
O povo noveleiro, sempre imerso na sua ridícula vida individual, com a barriga cheia de si e dos seus, na busca dos penduricalhos materiais, de repente se vê convocado pelos titãs – os manda-chuvas e pais adotivos da maracutaia – que sempre lhe comandaram a vida. E ele, povo ignaro, de então, acha-se militante, coloca a camisa da corrupta CBF, representando o que chama de sua pátria, “ó mãe tão esquecida”, mas sem reconhecer-lhe a maternidade, a agride com verborragia desnecessária, contraditória, ensandecida, nunca que preocupado com seu país, com os famintos ou desassistidos, mas com o calo que lhe é apertado por aquele Nike comprado no shopping dos brilhantes.
Ou aquele povo, aquele que se insere nas ditas lutas sociais, que grita, berra, anda de alpercatas – porque esconde os sapatos italianos para outras ocasiões – mas que na verdade tem pretensões de vagas e cargos no governo, que defende a SUA camisa, o SEU partido e não o seu país e/ou aqueles filhos mais explorados ou excluídos. Aquele que se diz – e às vezes acredita mesmo – “politizado”, mas na verdade é apequenado pelo seu ideal individual de crescimento ou parasitismo político, tal qual aqueles que ali estão desembarcando do atual governo, feito ratos, sem merecer os votos que receberam nem as calças que vestem.
São iguais. Ambos os “povos”. Usando as lunetas que lhes deram, veem o bem e/ou o mal a seu bel prazer, como lhe convém. Julgando-os como absolutos, criando uma batalha sem sentido com palavras bonitas como “democracia”, que poucos sabem o que representa a não ser o seu querer único e indivisível. Seu egoísmo pátrio de torcida organizada.
Resta-nos saber que entre um povo e o outro existem pessoas dignas, honradas, críticas, sérias. Pessoas com princípios que não precisam ou não vivem para uma coisa ou outra, mas têm a noção do outro, da divisão, são sensíveis e defendem o seu país por entenderem o que é chão, semeadura e colheita. São pessoas bem formadas, não necessariamente com diplomas ou letradas, com caráter, curiosas e sedentas da descoberta da liberdade, da fraternidade e da união.
A guerra que assistimos hoje é insana e nós a criamos durante anos, como uma doença que silenciosamente nos toma de repente, fruto de um movimento histórico e social de alienação, de capitalismo predador –como se existisse outro tipo –, ganância, ambição, de adoração e manutenção daquilo que nos consome, que consumimos e que desperdiçamos, numa mentira não tão dura até ser contada para nós mesmos.
Quanto de mal ou de bem trazemos conosco? Quem é bom ou ruim nessa história?
A luneta do bom senso é a melhor, mas pertence a poucos. Cuidado, meus amigos e amigas: “Exagerar é mentir!”
(*) Publicado originalmente no blog "Matutando o Brasil", em 2 de abril de 2016.


Nenhum comentário:

Postar um comentário