domingo, 29 de maio de 2016

"Você não é Daqui!", de Manuel Casqueiro para o AlmanaCULTURA


AVISO: Esta é uma obra de ficção. Então, qualquer semelhança com pessoas vivas, zumbis, vampiros, situações e lugares, é mera coincidência. Desculpem.

Esta fábula fabulosa passou-se num Reino, não tão antigo assim, abençoado por Deus e bonito por natureza, que beleza...
Quando você foi dormir havia uma rainha no trono eleita pelo povo. Quando você acordou havia um rei muito sisudo escolhido pelos traidores do povo. Mas você calou, pois você não é daqui.
Assim, você que fala a mesma Língua deles, tomou ciência de tudo o que mudara naquela noite de lua escura. Seus direitos à equidade, à comunicação, à cultura, à aquisição da casa própria e à saúde pública tinham sido suprimidos ou enfraquecidos. Mas você calou, pois você não é daqui.
A Polícia do Reino publicou sombrio aviso que você não poderá participar de manifestações políticas a favor ou contra o real governante de plantão. A respectiva pena, informa, didaticamente, o Órgão de Segurança do Reino, é de 3 anos de reclusão seguidos de deportação.
Deceparam-lhe o livre-arbítrio por meio do Estatuto dos Forasteiros que você nunca ouvira falar, ou tendo conhecimento dele, a ele nunca recorrera por não necessitar. A nobre rainha lhe resguardava os direitos mesmo você não sendo daqui.
 Eu sei, você tinha-se esquecido que era de fora. Todavia, de imediato, você aprendeu que pagar o Imposto de Renda na Fonte ou fora dela, o IPTU mais o DPVAT, arrostar com todos os diversos e enigmáticos impostos embutidos em suas compras, ter Folha Corrida limpa, estar em dia com a Fazenda Real, seu nome não constar no SPC do Reino, e, até ter o recibo quitado do Condomínio em mão, não bastam para torná-lo um cidadão, mesmo de segunda categoria, confiável. Mas você calou, pois você não é daqui.
Aí chegou notícia que “eles” lançarão Decreto contra seu livre-pensar e contra sua privacidade. Então, você, a partir da data da publicação da Lei, fica expressamente proibido de falar mal dos maus políticos do Reino nas redes sociais. Mas você calou, pois você não é daqui.
Prevenindo-se, você passa a trazer, em pasta especial, seu Passaporte, sua Cédula consular, sua Carteira de Identidade, seu comprovante de residência e o seu importante Cartão do Plano de Saúde. Porém, sendo você, neste quesito, igualzinho aos outros do Reino, isso não o livrará das abordagens policiais, de levar uma tapa no pé-de-ouvido, do gás-pimenta nos olhos, das bombas de efeito moral (que moral há nessa bomba?) e do assobiar das bordoadas em seu lombo. Mas você calou, pois você não é daqui.
Anteontem, “eles” mandaram o Ministro do Tesouro Real dar-lhe um recadinho: "Você precisa pagar mais impostos!" Assim, para sua desgraça, “eles” farão a mágica de ressuscitar a CPMF por Real Medida Provisória e aumentar alguns tributos com o comprovante que a arrecadação real despencou e que há precisão de equilibrar, urgente urgentíssimo, as reais Contas públicas. Mas você calou, pois você não é daqui.
Ontem, “eles” mandaram o real Ministro da Imprevidência, desculpe, da Previdência, dar-lhe um recadinho: “Você, agora, irá se aposentar aos 75 anos!” Assim, para seu alívio, “eles” não o deixarão morrer sozinho. Você baterá as botas ou as pantufas numa repartição qualquer, diante dos colegas e dos clientes que o aplaudirão pela sua ousada aposentadoria na expulsória da vida! Mas você calou, pois você não é daqui.
Hoje, quem sabe? O dia ainda não terminou, “eles” mandem o real Ministro das Relações Estrangeiras, que não é ligado em História nem Geografia, lhe dar um recadinho, que, de maneira nenhuma, o deixará surpreso: “Você aí, veja bem, por ser muito longe, perigosa e sem charme nenhum, estou a pensar em fechar nossa Embaixada no seu país e umas tantas outras na África e no Oriente, se bem que ainda não saiba em qual Oriente seja, essas reais representações diplomáticas, atualmente, não servem para nada!” Mas você calou, pois você não é daqui.
E o desmundo, num bater de panelas amarelas e zabumbas vermelhos, segue sua via sacra. Já tomaram e vão tomar ou restringir os Direitos Humanos no Reino, suas salvaguardas jurídicas e éticas, com a deslavada justificativa de ajustes pontuais na política interna e externa e nos Planos e Projetos Sociais da rainha afastada.
 Por você, valentemente, se manifestam e já marcham, pelas ruas e praças do Reino, nesta travessia indigesta, as mulheres, os idosos, os pobres ou acabados de sair da pobreza, os trabalhadores urbanos e rurais, as minorias raciais e de gênero. E os professores e estudantes, com certeza. Mas você calou, pois você não é daqui.
No entanto, eu não sendo daqui, estou aqui. E, ao contrário de você, não me calarei. Não posso silenciar. Em minha trajetória, a liberdade custou sangue. Nunca temi o que existe para ser temido e não vacilarei ante o improvável abstruso temer.

NOTA: Como toda a (in) decente fábula, esta também tem uma moral: “Quem cala consente, quem luta vence
                                                                       

Manuel Casqueiro é presidente da Academia Afrocearense de Letras, escritor e palestrante da República da Guiné-Bissau. O texto acima foi apresentado em 21 de maio de 2016, na Casa de Juvenal Galeno, durante evento  alusivo ao 2º Aniversário da fundação da AAFROCEL e ao Dia da África.


sexta-feira, 27 de maio de 2016

"O Esgoto das Ruas", de Raymundo Netto para O POVO

Até há pouco, estranhava o silêncio daqueles a quem pensava povo brasileiro. Havia apatia e insensibilidade aos acontecimentos, descaso à miséria e à opressão de muitos e ausência nas decisões políticas que interferiam diretamente na sua vida. Daí, a necessidade de sensibilizar e mobilizar, conduzi-lo à arena popular, ocupando o espaço que a ele pertencia, reivindicando melhorias e defesa das conquistas sociais, antevendo o país que queríamos ser, o que nos definiria perante o Mundo.
Hoje, nos parece que algo surpreendentemente mudou: pedíamos vozes, mas vimos emergir o esgoto das ruas, o discurso da individualidade, do egoísmo, da exclusão, da intolerância, do oportunismo, da tirania, da tortura e do estupro, numa sabotagem clara dos direitos humanos, do diálogo, do respeito às diferenças e da justiça social. Do contido esgoto, odioso recalque, a busca de vantagens pessoais e/ou de classe, de dominação de gênero e cor, do preconceito e de reconstrução de privilégios de uma colonial elite de salão.
O Brasil, historicamente golpista (d. Pedro I, Deodoro, Getúlio, Castelo, Temer...), sabendo que os filisteus não fogem a luta, nos guardou debaixo do tapete os velhos discursos de censura ideológica, do conservadorismo familiar, do divino autoritarismo, de “salvação nacional” pela ordem (leia-se “repressão”) e pelo progresso (leia-se “alimentação do capital”), num remake vintage da política “revolucionária sem sangue”, como vangloriavam os EUA, país terrorista que apoiou o Golpe de Estado de 64.
Usa-se a bandeira, como a exigir identidade fácil e futebolesca, símbolo de utilidade apenas ao jogo do poder, à manobra política e interessada que todos os dias somos obrigados a assistir com naturalidade e impunidade pela lama de machados, jucás, renans e sarneys, com a certeza de que vem mais frotas por aí. Nas conversas, o GOLPE, que diziam ser “viagem”, é declarado abertamente, com possibilidade de deter a operação Lava Jato, na qual sobrará para muitos que orientam o discurso do esgoto, o que está fazendo que se negociem mais manobras, como a de enfraquecer delações e a de oferecer a “paz mundial”, como antes, num “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
O governo suposto interino, associado a um legislativo fake e a um judiciário que lava as mãos enquanto tem a pequenez de negociar aumento em oportunidade de crise, conseguiu emplacar sete ministros do Lava Jato (foro privilegiado?), indicando também, como líder do governo na Câmara um dos defensores do Eduardo Cunha, sendo ambos investigados, além de colocar logo na Justiça e Cidadania um homem com atuação reconhecidamente repressiva, advogado em mais de 100 processos associados à lavagem de dinheiro e corrupção pela organização PCC. Até a frase que inspirou o discurso de posse do temerário conspirador (“Não fale em crise, trabalhe!”) *, sabe-se agora, pertence a um condenado por tentativa de homicídio, venda de combustíveis roubados, sonegação fiscal, estelionato e formação de quadrilha. E então, como querer reação desse esgoto, como querer que ele bata panelas pela educação, pela moralidade e justiça? Como querer que ele, por sua natureza, não comungue com essa merda toda?


(*) www.conversaafiada.com.br/politica/homicida-e-sonegador-preso-inspira-temer

quinta-feira, 26 de maio de 2016

"Um Brasil de Caranguejos", de Raymundo Netto para o blog "Matutando o Brasil"


Você que inventou esse estado e inventou de inventar
toda a escuridão. Você que inventou o pecado

esqueceu-se de inventar o perdão
Apesar de você, amanhã há de ser
outro dia!
(Chico Buarque)

O Ministério da Cultura voltou! O presidente interino – não por bondade nem por entender a necessidade estratégica da cultura para o desenvolvimento do país, o que é lastimável – voltou atrás e decidiu manter o Ministério.
Para quem sabe o que é cultura – e não estamos falando de mero entretenimento – e percebe o que a diversidade cultural de um país de proporção continental e miscigenado como o nosso representa enquanto riqueza – quem pensa que riqueza é apenas um tríplex com piscina e um Ferrari na garagem, não sabe, mas é pobre, pobre, pauvre de marré deci – o anúncio da extinção desse Ministério, que não já não atuava em toda a sua plenitude – nunca foi prioridade de governo – e que levaria anos para alcançar seu objetivo, é de uma gravidade extremosa e reveladora.
Vivemos num país no qual o seu conceito ainda é muito mal interpretado, menos ainda interiorizado como pertença e não é abraçado por muitos, além de que a sua ausência favorece aos interesses dos doutores da elite burra e gananciosa, afinal: um povo sem cultura é gado que em vez de chocalho bate panelas e desgasta o sofá no horário nobre de TV.
O tecnicismo de alguns governos que veem apenas a riqueza material como fonte de sobrevivência da nação nos indica o nível de miséria cultural de seu povo. E essa miséria cultural atrai a outra, de agarro e abraços com a injustiça e a desigualdade social. Claro que quem tem uma pontinha de segurança, os favorecidos historicamente e muitas vezes com poucos méritos de conquista, principalmente os homens, os brancos e os de classe alta e média, não se importam com questões de cultura e muito menos com a defesa de garantias sociais. Não é com eles! Daí, tremem de raiva ao ouvir falar de bolsa família, lei de cotas – que beneficia os negros e aqueles em situação de vulnerabilidade social –, favorecimento de casas populares, questões do aborto, o direito de transexuais e travestis em usarem um nome social (direito ora ameaçado por projeto (des)encabeçado por parlamentáveis dos partidos do atraso, como o PSDB, PRB, PV, PR, PHS, PSC, PROS, DEM e PSB, sempre eles), do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – afinal, vociferam: “lugar de mulher bela e recatada (recalcada?) é servindo, por obrigação, ao macho em seu lar (cárcere privado)”; “negro não é raça” (e o branco é o quê?); e “direitos humanos é coisa de comunista (mas fui mal aluno em sociologia)” – entre outros benefícios que rondam a periferia de suas vidas e que só incomodam quando lhe chegam na esquina e gritam: “Fortaleza – a nossa – apavorada!”
Junte-se a esses atrasados, a bancada cruel, ignorante e preconceituosa mantida pelos evangélicos, e não pelos evangelhos (que significam “Boas Novas”), e que usa o nome de Deus e da família – recusam as novas configurações familiares –  para patrocinar a tortura e a opressão humana, o machismo e a domesticação feminina, a castração da sexualidade, a visão da arte como vagabundagem (só entendem de dinheiro, que é o negócio deles), e a expropriação livre daqueles que já nada tem em troca da vacina da resignação e da promessa de um paraíso de fundo de rede.
Cadê a manifestação dessa turma diante da atualíssima crise no sistema público de educação? O que há na cabeça desses infelizes, egoístas e infiéis à revolução cristã? Ora, Jesus não nasceu e defendeu os pobres, as minorias, os excluídos, com quem conviveu e dividia pães e peixes até a sua execução ser encomendada pelo poder e pela bancada sacerdotal da época?
A Educação e a Cultura, as maiores e mais duráveis conquistas de um povo, os verdadeiros instrumentos do progresso e do desenvolvimento, da harmonia e da autoestima de uma nação, sempre foram colocadas em segundo ou terceiro plano, e só lembradas durante campanhas eleitorais.
Há de se chegar a hora de ser abominosa e inaceitável toda a hipocrisia desses fariseus que manipulam as leis e as manobram em sacrifício do povo e em benefício próprio. Há de chegar a hora do povo despertar desse sono profundo e entender que somos um todo e que este país só será forte e respeitado pelo Mundo quando houver transformação social. Que esse dia venha pelas mãos do nosso povo e não por aventureiros. É querer demais?


sábado, 14 de maio de 2016

"Ainda sobre o Golpe!", por João Alfredo Telles de Melo


55 votos (no Senado) X 54 milhões (nas urnas).
Um processo aberto na Câmara por um desafeto da presidenta e de seu partido, retaliando o processo de cassação de seu mandato de deputado. Um pedido de impeachment encomendado (e pago!) a uma "jurista" pelo partido derrotado nas eleições presidenciais. A falta de fundamentação legal para as razões do pedido de impeachment, já que práticas semelhantes (as chamadas "pedaladas") já haviam sido realizadas não só por ex-presidentes, mas, também por ex e atuais governadores, inclusive o relator do processo no Senado; prática esta que era considerada legal até ontem pelo TCU. Um "tribunal" político, o Congresso Nacional, onde a maioria de seus membros é composta de investigados ou até réus em diferentes processos de corrupção, inclusive, na operação Lava Jato. Um judiciário politizado até à medula, que, desde a ação ousada de juízes de primeiro grau, através de "pequenos golpes" (como o vazamento seletivo que atingiu até a presidência da República e o impedimento da posse de um ministro) até a complacência conivente da mais alta "corte" (o nome é sugestivo!) do país - teve participação ativa para garantir a "roupagem legal" do processo de impeachment.
Uma mídia, cuja principal rede de comunicação (que, lembre-se, sempre foi regiamente cevada com dinheiro público, inclusive dos governos petistas) funciona como um verdadeiro partido político e que, como porta-voz das classes dominantes e de suas elites políticas, teve papel fundamental para (de)formar a opinião pública favorável à destituição da presidenta. Aí vêm dizer que não foi GOLPE???
GOLPE, sim. Institucional, legislativo, midiático e, acima de tudo, inconstitucional! É preciso reafirmar SEMPRE! Portanto, está mais do que na hora de devolver ao povo o que lhe foi roubado: a sua SOBERANIA!
A votação de hoje antecipa já a cassação definitiva de Dilma e a entronização definitiva do golpista e usurpador Temer, com seu saco de maldades contra o povo brasileiro. Por isso, temos que lutar por NOVAS ELEIÇÕES. Eleições gerais, porque esse Congresso, por sua maioria, perdeu completamente a legitimidade ao "legitimar" o Golpe. 


sábado, 7 de maio de 2016

"Parlamento Muito!", crônica de Raymundo Netto para O POVO


Cunha, entre acunhadores, sendo convidado a desacunhar

O Brasil, como pátria educadora que nunca foi, abriu a grande sala de aula ao vivo e em cores no temível domingão da Câmara de Deputados que, com ares de um stand-up comedy de mau gosto, saiu do anonimato para mostrar sua carantonha, envergonhando-nos colonialmente perante o mundo.
Quem acompanha noticiários e/ou lê jornais mais regularmente, sabe bem que a Câmara, e nosso legislativo como um todo, nos prova: há pelo menos 3 coisas que não tem competência para fazer: representar o povo brasileiro, legislar sobre os assuntos de interesse nacional e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos.
Não seria extravagante se perguntar que tipo de representação essa Câmara sustenta, quem afinal é esse “povo brasileiro”, se algum deles tem noção do que se configura como interesse nacional e, quanto ao último item, vale a máxima de que não se deve colocar lobos para tomar conta de ovelhas.
Tirando o Sérgio Reis, que provavelmente estava ali por engano para uma palhinha de Jeca triste, e assim o foi, os demais chegaram ao microfone cercados por homens e mulheres que, buscando o cinegrafista, vaiavam, assobiavam, aplaudiam e cuspiam numa balbúrdia de bingo de centro da cidade.
O burlesco Plenário – não ouso dizer “palhaçada”, pois esses artistas são sérios e o Brasil, num dito francês, não o é –, como de costume, usou da espetacularização do momento. Coisa preparada para o álbum dos quinze minutos de fama e de sem noção. Cada um que saudava a Deus, à família, ao gato e ao papagaio e aqueloutros que ainda tinham estômago para “recadinhos do coração", comprovava a sua inobservância da causa, da sua função de representatividade e do seu papel de servidor público.
No Domingão da Câmara foi perceptível para as pessoas que não estavam apenas interessadas no placar de seu “time” – muito no nível de torcida organizada de equipe em terceira divisão –, a falta de decoro, a descompostura, a improbidade e a não idoneidade. Pior: o resultado da ausência de educação de cidadania para o exercício do poder. E, convenhamos, não há como falar em civilidade e progresso num país no qual pelo menos metade de seu Congresso Nacional responde (alguns já condenados em primeira instância) a inquéritos, ações criminais e cíveis, entre outros. Dizem até que aqueles que nessa lista não constam, já se consideram “classificáveis”.
Para não sair da harmonia dessa bizarra orquestra, o presidente-maestro também traz um currículo invejável de alta propinagem. Durante o show, apresentava uma fingida apatia de quem percebe que a cacetada vai ser grande, mas que não teria como escapar da sua, o que acontece agora, por unanimidade, com um supremo pé na bunda. O seu substituto também é investigado e, em breve, o presidente do Senado também cairá. E nisso, numa democracia de instrumentos e defensores acanhados, a política é engenhosamente articulada para não permitir mudanças, propiciando a corrupção de praxe, em nome da governança dessa pátria mãe tão distraída sempre mercadejada em acordos, a maioria, para não gastar saliva, imorais. A nossa Independência foi golpe, a proclamação da República, outro, assim como o Estado Novo, a “Revolução” de 64, a chacina do Curió – só para não cair em esquecimento – e o processo desse impeachment.
Infelizmente, o maior e melhor golpe poderia emanar do povo, mas isso só com muita educação, o que nunca fez bater panelas por aqui. #ocupemasescolas!


domingo, 1 de maio de 2016

"Niltoctopus", de Raymundo Netto para "Crônicas Absurdas de Segunda"


Ilustração: Valber Benevides
No meio de uma correria dos diabos, uma moradora faladeira do Monte Castelo veio me chamar, pois aquele nosso novo vizinho, o Nilto Maciel, estava preso fora de casa. Preso? Fora de casa? Como? Fui lá.
Na calçada, algumas pessoas espremiam as oiças no muro, na tentativa de acudir aquele “senhor que morava sozinho e que só botava o nariz fora de casa para receber a correspondência e, vez por outra, pessoas.”
Aproximando-me, também ouvi a sua voz por um combogó:
– Um chaveiro. Podem me chamar um chaveiro? Estou preso aqui. Eu pago.
Conseguiram por ali o tal chaveiro. O rapaz, acostumado com as situações mais estranhas e descabidas, nem nada perguntou. Foi logo descerrando o portão, os cadeados e tudo mais que encontrasse pelo caminho. Entrei em seguida, ouvindo do dono da casa:
– Fecha. Fecha logo. Não deixa ninguém entrar!
Assim o fiz, quando, repentinamente, pasmei: lá estava o Nilto, em cuecas, no pequeno jardim. E, que horror: quase não acreditei quando vi seis braços emergindo de seu tórax magro.
– Tá olhando o quê, Netto? Em casa, eu só ando de cuecas. É pecado? Vou para o inferno por causa disso?
Passado o susto e dispensado o chaveiro, me explicou que estava na lavanderia do quintal, lavando justamente as cuecas, quando um vento inesperado lhe trancou a porta da cozinha. Correu o oitão na esperança de ter deixado a porta da frente aberta. Não deixou. Assim como também não levava o celular com ele – coisa que sempre lhe aconselhava: “Nilto, você mora só, não pode ficar longe de celular!” Daí, pedia socorro aos passantes e curiosos desconhecidos à calçada.
Postamo-nos na sala. Ele, dobrado o joelho sobre o peito, sacudia a cadeira de balanço. Na mesa ao lado, uma canequinha com a logo do Caffé Portuguez. Por trás dele, ao invés da Bíblia, A Besta Humana, de Zola. E, sobre este, a estatueta de Nossa Senhora da Palma, padroeira da cidade natal de boa parte de suas mentiras.
Eu, sentado no sofá, bebia a reserva de Coca-Cola, fingindo não estranhar aquela sua inusitada aparência de deusa hindu. Na verdade, sempre nos perguntamos como ele conseguia fazer tanta coisa ao mesmo tempo. Estava aí o como!
Tranquilo, pôs-se a falar do atraso que aquela situação lhe causaria – a cada dia acordava mais cedo. Então, ali mesmo cortava folhas de papel com endereços impressos, despejava cola no envelope, guardava um livro a ser enviado para um, outro livro para outro, rabiscava alguma coisa em seu diário – hábito que trazia de menino – e separava os livros que recebia de autores de todo o país. E, quando alguns de seus membros excedentes se desocupavam, distraíam-se em quedas de braços.
Debochando de meu assombro silencioso, relatou:
– Quando criança, sonhava em ser goleiro profissional do Fortaleza, sabia?
– Sério, Nilto? Mas preferiu escrever, não é?
– Pensando bem, Netto, eu preferia ser vagabundo. Era meu grande sonho. Mas não consigo viver sem fazer nada. Vejo as pessoas rezando, fazendo crochê, vendo TV, passeando pelas ruas, sentadas nos bancos, sem nada a fazer, tristes. E é verdade, elas não sabem mesmo o que fazer da vida, do tempo. Tenho muita pena delas. Mas eu não sou assim. Estou sempre muito ocupado, a cabeça fervilhando de ideias para livros.
– E esses personagens, cara, você tira de onde?
– A maioria surge por acaso. Não busco nada, não corro atrás deles. Vêm num piscar de olhos. Não os cato nas ruas. Eles se entregam a mim como folhas mortas, papéis velhos, cacos de vidro, esterco. Acolho alguns. Lapido-os, lavo-os e faço deles arte literária. Outros, porém, não existem nem como ideia ou, se existem, estão bem enterrados ou perdidos nas páginas de velhos alfarrábios. Fui procurá-los nas enciclopédias, nos dicionários, nas biografias, em compêndios de história. Teci-os com o objetivo de exibir alguns personagens históricos, não como seres superiores, extraordinários, mas tão somente como seres humanos.
Enquanto ele discorria seu falatório quase sempre mirabolante, eu folheava seus diários. Percebi o quanto Nilto era obsessivo por detalhes e números. Contava tudo. Registrava o número de contos, romances, poesias, artigos. Classificava suas colaborações em blogues e revistas de centenas de pessoas. Catalogava o que publicava em seus blogues, site e nas redes sociais. Contava o número de linhas e de páginas de cada livro: “Vasto Abismo: 4.680 linhas; Carnavalha: 3.750; A Leste da Morte: 3.500 linhas.” Além de criar manuais para tudo, como os de passo a passo de seu equipamento tecnológico, cadernos de registro de dados dele, da esposa, das filhas – sempre me falava delas: Fernanda, Menita, Nioche e Tusa –, telefones dos amigos, e-mailing, agenda de rotinas, relação de medicamentos, cardápio e estudos de personagens – bem parecido com casting teatral –, registro de e-mails enviados e recebidos, acervo de fotos e vídeos etc. Uma mente enlouquecidamente organizada!
– Tá pensando que é fácil, é? Tá pensando que é fácil? Eu já comi o pão que o diabo amassou! – bradava, olhando para o teto com ar solene. – Desculpe-me o lugar-comum, mas preciso ser bem didático, para não incorrer no pecado da inverossimilhança – depois ria, ao balançar de ombros.
Naquele momento, o carteiro gritava ao portão, empurrando livros e cartas pela goela abaixo de sua caixa de correio. Aí, para mudar de assunto, a respeito da constante pilha de livros que via no sofá – boa parte era de tufics, exemplares repetidos –, perguntei:
– Nilto, você precisa mesmo receber todos esses livros? E ainda escrever sobre eles? Não é melhor usar o seu tempo para concluir o seu romance, dedicar-se a novos contos e projetos?
– Herança de meu tempo de editor. Às vezes, é bom saber o que andam escrevendo. Machado e Shakespeare entenderiam. Tem uns mais difíceis de engolir. Um saco. Por isso, tento embromar alguns e alego falta de tempo, morte de parente próximo, incêndio em casa, paralisia nas mãos, cegueira momentânea, doença grave. Digo até que morri, mas eles não acreditam – ri. – Acho que já me consideram imortal.
– É, essa coisa de se dedicar à literatura e de ser escritor não é fácil...
– Também não é difícil. Meu primeiro livro, mirrado, de poucas páginas, capa de causar espanto, sem abas, cheio de erros tipográficos, saiu por uma gráfica de Fortaleza. Paguei a despesa, programei lançamento num bar, convidei amigos da faculdade, do trabalho e vizinhos e me tornei escritor. Simples assim. Por isso tem escritor saindo pelas paredes.
– Mas você conseguiu vários desafetos nessa coisa de resenhar livros, não foi, Niltão?
– Netto, é preciso ser franco em avaliação de arte, como em tudo na vida: nada de ludibriar os iludidos, passar mão na cabeça dos incompetentes, elogiar os medíocres. O copista ou escrevedor pode passar anos e mais anos sendo louvado em jornais, revistas, programas de televisão, blogues, por resenhistas, jornalistas, arcebispos, generais, ginecologistas, deputados, beldades do cinema e da televisão. Pode ganhar prêmios à vontade, cadeiras cativas aqui e ali. Pode ser traduzido para mil e uma línguas e ganhar milhões de dólares. Continuará medíocre para sempre, até desaparecer de vez, ao morrer, como se nunca tivesse existido, como se nunca tivesse escrito uma só página.
Levantou-se, foi à cozinha tomar seu remedinho com um gole de água. Levava a efeito, fielmente, os horários. Há tempos não bebia nem fumava e evitava sair para não esquecer de cumprir a sua rotina de tratamento. Queria viver para escrever e publicar muito. Estava numa ânsia de livros, produzindo como nunca. Na volta à sala, após concluir uma roufenha cantarolada “Dez anos”(1) de araque, continuou:
– Os escritores daqui gostam de andar juntinhos, de mãos dadas, embora em seus sonhos matem uns aos outros. E isso, sabe por quê? Por causa do mercado literário que é como um disco voador: todo mundo diz que vê ou viu, todo mundo é doido para dar uma voltinha ao redor da galáxia, mas a vidinha cá na terra de Alencar continua tão difícil para o escritor de hoje quanto era no tempo dele.
– Pois é, Nilto, mas o escritor não precisa viver nessa fixação de publicar, de se lançar o tempo todo. É muito bom ir devagar, duvidar de si mesmo, insistir na leitura autocrítica, ouvir os colegas mais experientes, ler sempre que possível autores variados. Você tem uma carreira de muitos livros, de prêmios, conhece muita gente no Brasil, tem seu trabalho reconhecido e, sendo agora aposentado, tem a vida inteira para se dedicar ao ofício.
– E por isso eu escrevo todo dia, leio todo dia. Acordo cedo para ver o sol queimar o chão, para me ver dentro do espelho (embora me saiba feio), para esperar a visita (esperada ou inesperada) das moças de corpo e sangue expostos ao meu vampirismo de esteta. Todo dia me correspondo com meus amigos, que são centenas. Não falarei deles, porque eles falam de mim a toda hora e estão quase toda noite em minha casa, a fuçar meus livros raros, a me pedir prefácios e resenhas, a me fotografar e filmar, a fazer perguntas enigmáticas. Mas, como santo de casa não faz milagre, nenhum deles me chama de grande escritor, contista fabuloso, romancista de primeira linha, essas coisas que diz todo leitor sabido.
Difícil não rir diante da indireta no queixo. Mudei de assunto, lembrando de uma viagem nossa para evento em Limoeiro (2), na qual foi surpreendido com homenagem – não confessava, mas adorava as homenagens:
– E quando iremos viajar novamente, Nilto? Não sente falta de sair um pouco da cidade?
– Nunca me interessei muito por conhecer as cidades. Prefiro ficar em casa, a escrever, mexer e remexer nos meus textos. Como não bebo mais, não me sinto à vontade em ambientes festivos. Mas sabe do que eu gosto mesmo? É de pensar. Por isso eu vivo penso, torto. Dizem que quem muito pensa fica torto. Fiquei torto muito cedo. Ou nasci assim. De vez em quando me dá uma reina de pato doido e saio por aí, para ver o mundo, as pessoas. Mas volto logo para casa com saudade de mim.
– Tem algum novo plano em vista?
– Não só um. Infinitos. Inclusive de dominar o mundo, ficar riquíssimo, cercado pelas mulheres mais bonitas do Planeta e de publicar best-sellers. Mas vou precisar de sua ajuda, por que eu não entendo nada de editais, nem de projetos, nem de prestação de contas e não sei contar piadas – e largou uma estrondosa e comprida risada de mentirinha – aha-ha-ha-ha-a-ha... –, enquanto as mãos corriam pelos teclado do computador, à boca da impressora e empurrando um pen-drive teimoso: – Acode-me, são Webston (3)!
– E você precisa mesmo disso tudo, Nilto? Não está bem como está?
– Olha, não sou um homem realizado. Se me realizar, terei chegado ao topo do Everest, à beira do abismo, ao fim da picada. Certamente Camões sonhava outros lusíadas; Dante, outros paraísos; Shakespeare, novos otelos. Não, não sou satisfeito comigo, nem com o mundo. Tudo está para ser feito, realizado. Mesmo assim, hoje acordo satisfeitíssimo porque alcancei minha alforria mental, libertei-me das muralhas de Jericó, da moral puritana, das crenças infantis de paraísos perdidos.
Levantou-se novamente e me pediu para acompanhá-lo à cozinha. Abriu a porta da geladeira, ofereceu-me uma coisa ou outra e de novo mais Coca-Cola. Afastava os pratos e talheres sujos, que guardava lá dentro – para evitar as baratas –, e me falou das últimas visitas, dos últimos telefonemas. Criticava, elogiava, perguntava se havia lido o livro tal ou aqueloutro recém-lançado. Insistia, por pura molecagem, em perguntar se eu queria que ele escrevesse elogios ao meu livro que, por sinal, não gostou. “Mas de jeito nenhum!”, respondi. Daí, me contava as histórias mais absurdas de resenhas e prefácios pedidos por encomenda.
Fomos ao quarto do quintal, onde a manivela de um antigo mimeógrafo pedia intercâmbio(4):
– É isso, Nettó, deixemos a vida alheia para lá. Cuido eu da minha, cuida você da sua. E por falar em minha vida, você sabe que me tornei quase um animal doméstico. Uma espécie de cão sem dono, trancafiado numa casinha de madeira, quase sempre com a coleira atada à argola do muro. Minha missão, porém, não é rosnar e afugentar ladrões ou intrusos. É escrever meu epitáfio, dia e noite, num escreve e apaga sem fim, no chão, no muro, na baba, no céu, na cabeça. Afinal, meu caríssimo amigo, sou marginal da literatura, um escritor de poemas, contos e romances. Há muito deixei de sonhar com glórias e famas. Tudo isso é passageiro. O que é bom fica, permanece. Sem precisar de muletas, fanfarras, galardões ou medalhas.

(1) Dez anos, de Rafael Hernández, versão de Lourival Faissal, sucesso de Emilinha Borba (conhecida como “garota grau dez”).
(2) Jornada das Letras e I Feira do Livro de Limoeiro do Norte (2011)
(3) Webston Moura nasceu em Morada Nova, mas reside em Russas. Poeta e blogueiro, autor de Encontros Imprecisos: insinuações poéticas, era o fiel “consultor técnico” de Nilto Maciel, coeditor do blogue Literatura sem Fronteiras.
(4) Nilto Maciel criou o informativo Intercâmbio, impresso em mimeógrafo, distribuído pelo autor para escritores residentes em diversos estados brasileiros.



Nilto Maciel (1945-2014) nasceu em Baturité, Ceará. Foi um dos fundadores da revista O saco, em 1976. Morou durante muito tempo em Brasília, retornando ao Ceará em 2002. Editou a revista Literatura: revista do escritor brasileiro, de 1992 a 2008. Premiado autor de livros de poesias, contos, romances, novelas e ensaios, como Tempos de mula preta, Punhalzinho cravado de ódio, A última noite de Helena, Os luzeiros do mundo; Luz vermelha que se azula, Pescoço de girafa na poeira, Guerreiros de Monte-Mor, Como me tornei imortal: crônicas da vida literária e Vasto abismo, entre outros. Participou de diversas antologias e organizou, com Glauco Mattoso, em 1977, Queda de braço: uma antologia do conto marginal. Mantinha alguns blogues, como o Literatura sem fronteiras. As falas de Nilto, na crônica, foram extraídas e adaptadas de entrevistas, e-mails e da obra do autor.