sábado, 30 de dezembro de 2017

"2018: 130 anos de Demócrito Rocha", de Raymundo Netto para O POVO


“(...) É no jornal que o povo encontra o seu pão espiritual de cada dia. O jornal descortina-lhe o mundo, vencendo distâncias. [...] Quando o povo geme escravo, entorpecido pelas algemas do cativeiro, indiferente à violência paralisante do grilhão, o jornal é o sangue novo, forte e generoso a nutrir-lhe as células dormentes, a despertar-lhe os neurônios amortecidos, a ondear-lhe, nas veias, a torrente vigorosa e enérgica da revolta. O povo precisa de mais gritos que o estimulem, de mais vozes que lhe falem ao sentimento. Eis porque surgimos...”
Esse é um fragmento do primeiro editorial d’ O POVO, o jornal mais antigo e o único diário em exercício no Ceará, publicado em 7 de janeiro de 1928, ou seja, há 90 anos. Foi escrito pelo seu criador, o jornalista, telegrafista, odontólogo e poeta baiano Demócrito Rocha (1888-1943), que, em 2018, se vivo fosse, celebraria 130 anos.
Quem conhece um pouco da história do Ceará sabe que é impossível se passar pelas décadas de 10 a 40 do século XX sem tocar em seu nome. Na década de 20, em especial, por meio de suas “Notas”, era, em um tempo sem rádio, TV ou internet, a legítima voz do povo que acolhera em seu coração, razão pela qual teria sido, na época, covardemente surrado e humilhado em praça pública por 12 policiais armados a mando do governador.
Daí, fundaria o periódico na marra, por atrevimento, com pouquíssimos recursos e quase nenhuma condição, movido pelo sonho de edificar o jornal que ele queria, mais justo, livre e independente, inovando o fazer da imprensa desde então.
Com início num sobradinho da praça dos Leões, um gregário Demócrito criava campanhas, concursos, promoções, poemas, lia caligrafias, atraía intelectuais e escritores, idealizava projetos musicais na recente rádio PRE-9, elaborava estratégias comerciais, participava de reuniões artísticas, políticas e sociais de toda natureza. Durante algum tempo, exerceu concomitantemente as carreiras de dentista e de professor da Faculdade de Odontologia – do qual também foi defensor – para ajudar a pagar a folha do jornal e manter a sua família: a esposa Creuza e as filhas Albanisa e Lúcia.
Assim, com muita resiliência – e forte dose de teimosia e idealismo – conseguiu sobreviver à quebra da bolsa de Nova York, logo no ano seguinte, além de duas grandes guerras mundiais, às censuras e golpes de estado e a todas as crises nacionais e internacionais que elevavam os preços dos insumos e equipamentos, entre os quais, o imprescindível papel.
O POVO, ele sabia, seria amado e odiado, aclamado e perseguido, de modo que habilmente pressentia quando reagir e/ou quando recuar, tudo ao seu tempo, e nada mais natural para uma folha que trazia entre seus princípios a democracia. Princípio esse que Demócrito levou às tribunas quando deputado federal, até ser deposto durante a ditadura Vargas. Idealista, Demócrito não visava ao poder, morrendo sem nunca ter tido uma casa própria ou publicado um único livro seu, ao tempo que publicava e promovia os de outros talentos locais.
Entendo que o jornal O POVO, aos 90 anos, não é a sua diretoria, assim como também não é apenas o seu corpo funcional, menos ainda o edifício que o acolhe. Corre nele a seiva de Demócrito Rocha e de todos os seus sucessores: Creuza do Carmo Rocha, Paulo Sarasate, Albanisa Sarasate, Demócrito Rocha Dummar e, hoje, Luciana Dummar. Vai mais além, trazendo nessa artéria aberta o espírito de todos aqueles que por essa escola passaram um dia. De personalidades reconhecidas a pessoas comuns que encontramos nas ruas, nos bares, nas igrejas, nas praças e que, ao saberem que fazemos parte do O POVO, nos relatam histórias suas ou de parentes e amigos que ali escreveram ou trabalharam, ou mesmo as de assinantes históricos e de matérias que os impactaram. Já conheci jornalistas, editores, gráficos e até ex-gazeteiros que se recordam do som das pesadas máquinas ou das campainhas que indicavam a hora de distribuir o vespertino.
O jornal de Demócrito, acessível em grande audiência pelos impressos, celulares, tablets, computadores, rádio e TV, é presente em 90 anos de história de todos os dias e em todos os segmentos, fazendo as contas para além do calendário, significando e revelando muito mais do que podemos ver, ler, ouvir ou tocar. E, tudo isso, acredite, a partir de um sonho.


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